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    Arquivo: Edição de 16-11-2012

    SECÇÃO: Crónicas


    O lugar de cada um

    Foto GL
    Foto GL
    Um dia destes, no autocarro que diariamente me transporta a caminho do meu trabalho ouvia duas senhoras conversarem sobre a crise – eram empregadas domésticas e uma delas tinha o seu “patrão” desempregado desde há muito tempo: um engenheiro ainda novo, conforme dizia, e que já era ela que apoiava a família ao levar-lhes pão fresco para o pequeno-almoço sem que lhes quisesse o dinheiro. Comentavam entre elas: «Quem os viu, todos emproados e quem os vê agora!». Este reparo fez-me vir à lembrança tempos em que as classes sociais se identificavam pelo padrão de vida das pessoas, pelo vestir, pelo calçar, pelo número de empregadas domésticas que tinham, pelo colégio que frequentavam, pelo número de países que visitavam ou ainda pelo modelo e pelo número de carros que tinham, o que era ainda mais importante e valorizado socialmente se houvesse o “motorista”.

    Também comigo se tinha passado algo semelhante, há muitos anos, em tempos em que um motorista levava uns meninos à escola e o meu pai pediu para que eu pudesse também ir – a forma de poder continuar a estudar, no Porto. A regra era simples: nunca me atrasar, sentar-me atrás de todos e não falar. Foi muitos anos mais tarde que a situação se inverteu e eu, sem nunca ficar feliz com isso, certo é que me lembrava que a vida é irónica e sempre carregada de surpresas. Ao lembrar esse acontecimento dei por mim a pensar que nos tempos atuais e porque a agressividade da evolução não perdoa, anda “tudo misturado”.

    Agora, assiste-se a uma “sede de estatuto” que por vezes se torna desmesurada. Todos querem lá chegar, ao “topo social”, mesmo sabendo que vista-se aquilo que se vestir, isso não dá validade ao “estatuto” de cada um.

    Eu tenho orgulho em saber que na minha família terá havido um “tio comendador”, cuja foto está emoldurada e guardada na igreja de Manhuncelos - um Português que enriqueceu no Brasil e foi um benemérito da terra. Ou ainda que o meu avô José Bento, carpinteiro, de aspeto aristocrata, como se pode ver na foto, foi um dos Portugueses que, antes de 1932, ajudava de forma voluntária o grupo da paróquia na limpeza interior da estátua do Cristo Redentor, na cidade do Rio de Janeiro, a mesma cidade onde também ficou sepultada uma tia com 10 anos, Alzira. Nome que seria dado como legado à irmã que atravessou o Atlântico na barriga da sua mãe e nascia em 1932 – a minha mãe. Foi já em Portugal que este avô, ainda novo, sucumbia a uma doença que havia de deixar seis meninas sem pai e a minha avó passaria a ser identificada como a “viúva da Tapadinha”, a que tinha sido casada com o “Zezinho do Tojal” e atravessou todas as consequência de uma guerra que não era nossa e o “nome de família” não impedia que estas meninas tivessem que ir com a senha na mão e trocá-la por géneros alimentícios, racionados.

    É também mais que evidente que tenho igual orgulho por ser neta de uma mulher de estatura baixinha, nascida em 1903, e com a característica invulgar para a época – uma mulher do povo que tinha feito a escolaridade obrigatória da sua época de menina e sabia ler e escrever na perfeição. Era conhecida como a “Aninhas do Moinho”, pelo facto de ser responsável pelo moinho da sua terra, onde as pessoas iam levar os seus alqueires de milho para transformar em farinha.

    Percebi assim que ser-se de origem humilde ou não, isso nunca será de importância máxima, porque nós somos aquilo que somos. Aparentar nunca será o mesmo que ser e aqui concordo com uma frase que li e é atribuída a George Sand - temos a idade do nosso coração, da nossa experiência e da nossa fé. Somos e seremos sempre identificados pelo “tipo de chá” que cada pessoa bebe de pequenino e isso passa pela educação e pela atitude de respeito que encontramos, ou não, em qualquer estrato social. As diferenças, por si só, nunca serão um fator impeditivo para que nos abram as portas de uma casa, de uma amizade ou até de um sorriso.

    Para mim, pessoalmente, o valor das coisas está também em aspetos simples e genuínos como o de pessoas que no meio de óleos, motores e desperdícios me dão a conhecer autores de música clássica, que me transmitem paz quando os ouço. Ainda, quando têm a consideração de me entregar para leitura uma edição antiga do “Primeiro Livro de Poesia” numa seleção de poesias para crianças feita por Sofia de Mello Breyner Anderson, o meu primeiro livro de poesia. Ainda, felizmente, que o coração que bate dentro de cada um de nós vai ser sempre a tal máquina que nos ligará à vida se nos correr um líquido nas veias que se chama sangue e que universalmente terá sempre a mesma cor – vermelho, com a dose de humanidade que cada um ajustará a si mesmo, qualquer que seja o lugar que ocupa na “barricada”.

    Por: Glória Leitão

     

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