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    Arquivo: Edição de 30-09-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    Tesouros por descobrir

    Ainda o dia se espreguiçava e os finos cabelos do sol tentavam romper por detrás das touças da Devesa, já o tio Carlos, ganchas ao alto, desferia golpes enérgicos em torno das cepas e desfazia os torrões, aconchegando os caules com a terra de molde a permitir que as raízes pudessem, com mais facilidade, encontrar alimento. Era tempo de escavar a vinha, nessa passagem de testemunho do inverno para a primavera com céu limpo de nuvens e sol brilhante mas incapaz de contrariar o efeito de um ventinho arisco que impedia o trabalhador de tirar a jaqueta não obstante o esforço despendido.

    Cada vez que o tio Carlos, desferido o golpe, erguia o tronco para recobrar fôlego, pelo rabo do olho alcançava, do outro lado do rio, aquele amontoado de pedras em meio a uma vegetação rasteira que o povo chamava “as muradelhas d’ó Couto”. E vá de ruminar sonhos fagueiros enquanto puxava pelo corpo, esta sim a realidade que sempre conhecera desde que, menino, seguia o pai e com ele aprendia o duro mester de lavrar e cultivar, de cavar e recolher o avaro fruto desse labor e tudo quanto a ele dizia respeito. As privações e os anseios não satisfeitos constituem alimento e estímulo da imaginação. Esse é o húmus em que se criam as lendas que falam de tesouros escondidos, histórias de potes cheios de libras ocultos em “falsos das paredes” ou enterradas em locais de acesso imprevisível.

    O tio Carlos conhecia muitas dessas histórias contadas ao longo dos serões de inverno ou em tardes de domingo à sombra das árvores nos quintalejos familiares. Algumas já eram bem conhecidas dos adultos mas os pequenos deliciavam-se com os pormenores e a maneira de contar dos mais idosos. As mouras encantadas que apareciam em certos lugares prometiam riquezas a quem as desencantasse, dizia-se que os antigos possuíam esconderijos muito bem camuflados nas paredes das habitações ou dos currais, davam notícia de que, em tal parte assim-assim, quando procediam à reconstrução de uma casa antiga, tinham encontrado moedas em ouro num pote de ferro a que tinham removido as asas; que o Amaral, homem que vivera noutro tempo, má rês por sinal, dizia a quem o quisesse ouvir que, à sua morte, havia de esconder tudo quanto possuía num chocalho que ficaria enterrado em local por onde as pessoas transitariam a todo o momento mas que nunca conseguiriam descobrir; que uns padres pertencentes a uma das famílias mais abastadas da aldeia – outros diziam que era só um que ali fora pároco em fins do século XIX e que não existia parentesco entre ele e a dita família – tinha(m) deixado os seus bens a esses familiares, incluindo a casa onde habitaram (habitou), que possuía capela, e que por baixo do soalho dessa casa havia uma sineta de ouro escondida.

    O tio Carlos sabia todas essas “contas” (1) e, tal como os restantes moradores, dava-lhes relativo crédito. No entanto, como diriam os espanhóis, “yo no creo en brujas, pero que las ay, las ay”, alimentava o sonho de um dia confrontar-se com esse dilema e – quem sabe? – levá-lo de vencida e dele sair triunfante que é como quem diz, dar de cara com a fortuna. Não sabia muito bem o que havia de fazer com ela como os trabalhadores das minas de volfrâmio que se sentiam ricos porque recebiam boas (?) compensações em dinheiro eles que nunca tinham “abesado” (2) mais que umas c’roas (3) para mercar botas espanholas de contrabando ou dois metros de pana (4), para mandar fazer um par de calças ao Chico Canteiro de Vila Boa ou ao Sá de Castrelos massa obtida com a venda de uns bácoros ou uns alqueires de centeio mas compravam agora canetas Pelikan de “tinta permanente” na livraria do sr. Mário Péricles em Bragança e ostentavam-nas no bolsinho do casaco que de nada lhes serviam porque não conheciam uma letra do tamanho do castelo. Também não lhe passou pela mente que, em tempos idos, outros já tinham despendido tempo e energias com a mesma motivação que agora lhe inflamava o desejo. Aqueles escombros eram um desafio igual à luz imóvel que todas as noites se via, igualmente para além do rio, mormente no outono e no inverno. Talvez um génio bom lhe viesse trazer algo de muito valor, género Lâmpada de Aladino, que lhe permitisse satisfazer todas as suas veleidades.

    Logo que teve oportunidade, pegou num enxadão, numas ganchas e numa pá e pôs-se ao trabalho com afinco. Enquanto cavava e removia o entulho, ia conclamando os tais génios para o ajudarem na empreitada:

    Ó mouros da mourama,

    Vinde à cristandade,

    Trazei-nos a riqueza,

    Fazei-nos a vontade

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    O tio Carlos gostava de versejar. No dia-a-dia, muitas vezes trocava o “Deus le dê bôs-dias” por uns versinhos patuscamente combinados, a martelar rimas ao cruzar com alguém. Neste caso, era uma fórmula, um abracadabra capaz de despertar a generosidade de qualquer génio mouro estranhamente inclinado para os praticantes do cristianismo. Porém, se génio havia, não se deixou comover e o tio Carlos, após uns dias de exaltação e muito suor vertido, convenceu-se de que mais valia prosseguir na sua lide habitual. A propriedade d’ó Cachão, inclinada para o rio, era “a menina dos seus olhos” e ali gastava dias a cuidar da vinha e a cultivar batatas, couves e o que mais ela lhe pudesse dar. Morta a ilusão do enriquecimento fácil nas escavações d’ó Couto, nem por sombras lhe assomou ao espírito que ali pudesse existir algo valioso mas de outra natureza. Diz-se que, ao fazer as valas (5) para plantar os bacelos da futura vinha, teria encontrado testos de panelas de barro, provavelmente objetos de cerâmica de povos antigos que ali teriam vivido. Uma vez que “quem conta um conto, acrescenta um ponto” constava que outros achados teriam sido atirados fora: rodelas de couro (antigas moedas em cabedal?), uma pedra redonda furada no centro, porventura ainda outras “relíquias”. Certo é que há notícia arqueológica de uma pedra com determinadas características que se encontra incrustada numa das paredes da casa que o tio Carlos habitou e atualmente pertence a um filho seu. Esse documento está registado no Museu do Abade de Baçal em Bragança. Pena é que os estudos arqueológicos, neste país, sejam tão limitados, impedindo que se faça luz sobre os nossos remotos antepassados.

    (1) Histórias, contos.

    (2) Conseguido, obtido, alcançado.

    (3) Pouco dinheiro, pequena economia.

    (4) Nomes dado pelos galegos a uma espécie de tecido semelhante à bombazine e introduzido na língua portuguesa pelos contrabandistas.

    (5) Fossos com maior profundidade do que os normais para lavrar ou para conduzir água de rega a terras e lameiros.

    Por: Nuno Afonso

     

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