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    Arquivo: Edição de 08-06-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    “Bino-kourov”

    Fiquei preocupada quando, há tempos atrás, soube que se tinha acidentado o ciclista da minha rua, Albino Araújo, o homem que aos 65 anos ainda pratica cicloturismo de veteranos e atreve-se a fazer uma média de 80 a 90 Kms ao domingo, conforme me disse quando nos cruzamos no café ao lado de minha casa e onde é habitual vê-lo já equipado a caminho da sua aventura ciclista, logo pela manhãzinha.

    Fraturou a anca e andava apoiado por umas canadianas e foi logo numa altura em que também eu, no espaço de um mês tinha dado três quedas aparatosas e isto porque tinha lido aquela frase do Charlie Chaplin, «quem olha para o chão não tem tempo de ver o arco íris», e eu que adoro olhar para o colorido da vida andava de nariz empinado sem pensar que também temos que ver onde pomos os pés – entusiasmada pelo desafio da vida não tinha mesmo visto as guias de pedra onde tropecei.

    Numa das quedas senti que tinha torcido um pé e mesmo tendo-me valido uma forte massagem que simpaticamente me foi dada por uma passageira do autocarro onde eu viajava, certo é que as dores iam-se agudizando e eu assustava-me porque precisava estar bem dos pés dado, que são eles que me sustentam na minha cruzada, e sei que passei a noite a mexer o pé como se pedalasse e só pensava que no dia seguinte tinha que estar boa, tinha que continuar a seguir em frente e assim foi, embora durante muitos dias sentisse ainda o mal estar normal neste tipo de pequenos acidentes.

    Eu inspiro-me sempre em pessoas guerreiras que conheço, e lembrava-me de ter batido a uma porta que me foi aberta por uma senhora jovem e de ar sofrido que depois confirmou o que eu tinha pensado ao vê-la apoiar a barriga – tinha regressado a casa de fazer uma cesariana, porque no momento em que se sentiu doente e teve que ir ao hospital descobriu, de forma inesperada, que estava grávida, tinha perdido o bebé e tiveram que lhe mexer nos ovários e dá para imaginar o quanto sofre uma mulher num momento desses. Fragilizada, quando começou a chorar felizmente que tinha ao seu lado um marido, amigo, companheiro, atento e carinhoso.

    Voltei a encontrá-la dias depois e já chorava menos e já estava a ficar pronta para voltar a pedalar ao encontro dos objetivos que tinha repensado para si, alterando a sua escala de valores tendo em conta que enquanto convalescia em casa foi fazendo a sua análise Swot – a introspeção ou balanço que todos fazermos e que nos fortalece, caso sejamos inteligentes ao ponto de percebermos onde estão as nossas fraquezas que precisamos trabalhar e transformar em forças, e as ameaças para que temos que ter a agilidade e o bom senso de transformar em oportunidades.

    Ela também tinha percebido que uma das nossas forças, quer sejamos homens ou mulheres, é chorarmos mas aprendermos a fazê-lo no mais curto espaço de tempo possível, para que as lágrimas não nos embaciem os olhos de forma a que não vejamos o sol da vida e a felicidade que é termos uma oportunidade de a viver.

    Engraçado foi que na mesma rua e a escassos metros conhecia a Sara, uma menina linda – como são todas as meninas e meninos e também uma guerreira, apesar dos seus 10 anos de idade. Chamo-lhe guerreira porque a luta que enfrenta é a integração na turma da escola, pois das vezes que a encontrei ela quase sempre chegava furiosa, ainda mais que pensava que era com os colegas da turma que a arreliavam e que – ela sentia – a repeliam, provocando-a e excluindo-a.

    No entanto, nesses momentos em que se revoltava, se ela pudesse olhar para dentro dos seus olhos grandes e verdes, que sobressaem num cabelo encaracolado, só ia perceber que estava era zangada com ela própria porque não sabe como “dar a volta a si mesma” e conquistar o seu próprio espaço, e aqui para nós que ninguém nos lê, quando ela descobrir a força que emana de dentro de si ninguém mais a impede de ser quem é, e como é, porque ela não vai deixar, tal como aconteceu com a irmã mais velha que funciona como a sua “guardiã”.

    Foto GL
    Foto GL
    Neste tipo de casos os pais não podem ser o escudo dos filhos, são a retaguarda, sofrem e muitas vezes choram por verem as dificuldades de adaptação a um novo desafio: as etapas escolares que eles precisam de percorrer – 1º, 2º, 3º ciclo de escolaridade e por aí fora porque vai ser sempre assim – a retaguarda dos filhos e o escudo têm que ser eles a construir, porque isso depende deles, da sua personalidade, do seu carácter, da sua força e coragem para derrubar as barreiras que se interpõem no seu caminho e que vão estar sempre a surgir quer seja na escola, nos empregos e até no próprio seio da família, e isso sabemos todos nós, que pedalamos num ritmo próprio, perseguindo os sonhos à medida de cada um e sempre diferentes de pessoa para pessoa.

    Hoje é dia 1 de junho e eu escrevo ao som da música de André Rieu, que me foi dado conhecer por partilha de conhecimentos transmitidos pelo meu vizinho ciclista, que felizmente já voltei a encontrar ao domingo, no cafezinho da manhã, completamente recuperado e equipado, e que já vai a caminho das suas pedaladas, a paixão que o move há mais de 50 anos e que, enquanto praticante deste desporto, já o levaram a subir as serras mais altas de Portugal – não tenciona parar e um dos projetos é ir a pedalar até Fátima, percorrendo mais de 200 Kms com o seu grupo de amigos que partilham desta paixão que ele me diz que com a idade ainda ficou mais forte.

    Nesta mesma altura, a pequena Matilde, que ainda é visita diária do nosso gabinete logo pela manhã (e aqui falo da mesma menina que em tempos distribuiu as molinhas pelos seus colegas), também tinha caído e fez uma luxação no cotovelo. Ficamos cheios de orgulho, quando a Géni nos relatou a forma corajosa como ela se portou no hospital, onde foi socorrida.

    Já recuperou e tirou o gesso há dias atrás e como hoje é Dia Mundial da Criança, entrava feliz na nossa sala de trabalho porque ia ao cinema com os amigos da escola, que lhe retribuíram a amizade do gesto que tinha tido e no momento em que se acidentou – foram colher flores no jardim da escola para lhe colocarem no braço, porque pensavam ser uma forma de lhe eliminarem a dor e o sofrimento.

    Também hoje está na mesa de operações do hospital um guerreiro, que é meu vizinho e que, se aos 50 anos já tinha perdido uma perna e um olho, e enfrentou estes desaires e outros desaires da forma que sabia e podia, agora vai ter que ser ainda mais corajoso porque não vai ter tarefa fácil quando sair daquela sala de operações e enfrentar mais um desafio que é o de superar uma doença que é cruel e implacável – o cancro.

    Aqui, sinceramente também acredito que se vai agarrar à coragem que sempre teve e que o faz estar ainda de pé, apoiado numa família que o ama e nos amigos que nunca o abandonam, ainda mais que ainda tem lá a sua mãe – a Rosinha, que com mais de 80 anos lhe vai dar toda a força e toda a coragem que só as mães sabem dar.

    O Sr. Albino diz que o nome com que o “batizaram” na equipa lhe foi posto porque é conhecido como o Bino, diminutivo de Albino e depois associaram-lhe o restante – Kurov, que foram buscar ao Vinokourov, mas eu gosto de pensar que na equipa de veteranos a que está associado e que se chama Clube de Cicloturismo da Lavandaria Gueimaia, também lhe chamam assim porque as qualidades mundiais e unânimes atribuídas a este ciclista, Alexandre Vinokourov, são: combatividade, consistência e qualidade, logo uma honra para si e para todos nós que o conhecemos e respeitamos, porque ao pedalar há-de levar sempre tudo de si e um bocadinho de todos nós, os que o vão fazendo através da vida e etapa a etapa, sem nunca sabermos se conseguimos atingir, ou não, a nossa meta, porque isso sim vai ser sempre uma incógnita.

    A par da música de André Rieu também está acesa a luzinha que temos na mesa do nosso computador e que acendemos em dia especiais e pelas intenções de cada um e hoje sou eu que tenho muitas e fortes!

    Por: Glória Leitão

     

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