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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 13-04-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    O mundo em rápida mudança

    Estertorava a Segunda Grande Guerra, em solo europeu, quando os meus pais resolveram deixar as plagas cariocas e retornar ao chão que fora seu berço.

    Nada de significativo acontecera nesses seis anos de ausência: a geografia física da aldeia paterna, onde fixámos residência, permanecia tal qual ele a deixara e, quanto à humana, as mudanças resultavam do que a nossa condição determina: houvera quatro ou cinco óbitos dos quais sobressaíam os dos meus avós, por claríssimas razões, alguns casamentos e quinze ou dezasseis crianças nascidas. Prosseguia a tradição das famílias numerosas.

    As pessoas vestiam-se ainda da mesma forma, recorrendo à lã e ao linho para a confecão das suas roupas, embora da planta de flor azul restasse uma cultura quase residual. Certos espécimes como toalhas, lençóis, algumas peças de roupa, sacos e pouco mais, transmitidos pelas mães e pelas avós, eram carinhosamente preservados, como se fossem joias de família, nas arcas das moças que, ainda adolescentes, iniciavam o seu bragal a perspetivar casamento. Lembro-me de ter visto, na casa que fora dos meus avós maternos, os espadeladouros* e respetivas pás (espadelas)** utilizados para retirar ao linho os tomentos*** antes que a planta revertesse em filaça**** que as mulheres, munidas de roca e de fuso, transformavam em fio e de ter ouvido aos adultos a descrição do respetivo ciclo. Mas, se a planta, nesse tempo, estava quase a desaparecer, alguns topónimos mantiveram-se e hão-de ser referidos enquanto a comunidade existir. A lã ainda era a principal matéria-prima que as mulheres, desde a infância, aprendiam a trabalhar para dela extraírem meias, camisolas, casacos, cobertores, colchas, xales e outros agasalhos como defesa contra o frio particularmente agressivo nas terras do nordeste transmontano.

    Os homens vestiam ainda camisas de riscado ou de flanela e roupa exterior em cotim ou sarja barata – os têxteis de lã eram exclusivos dos mais abonados – comprada a crédito nos estabelecimentos do senhor Oliveira ou do senhor Monteiro e transformada em calças ou casacos pelo tio Chico Canteiro de Vila Boa ou pelo tio Sá de Castrelos, salvo meia dúzia deles que permaneciam fiéis à tradição dos fatos de pardo. O vestuário feminino tinha como matérias-primas o riscado e a chita, quer para blusas, quer para saias, vestidos e aventais.

    A morte do tio Vitorino, principal sapateiro da aldeia, não deixou os moradores descalços porque, além de dois dos seus filhos que aprenderam a arte, havia ainda o tio Zé Trinta, este sem herdeiros. Mais apropriado seria chamar-lhes soqueiros do que sapateiros uma vez que os socos eram mais ajustados à vida na aldeia. No início do Outono, os irregulares caminhos do sítio eram cobertos de palha e folhatos***** de carvalho carreados das touças, que, pouco a pouco, se transformavam em estrumeiras pela contínua circulação de pessoas, carros e animais, os dejetos destes e os instáveis humores do tempo com chuvadas muito frequentes e um que outro nevão. Vencer esses atoleiros, entrar nos currais, regar lameiros ou transitar por caminhos lodosos, durante o Outono e o Inverno, requeriam calçado resistente e nada melhor do que os típicos socos de couro com piso em madeira de amieiro brochado, em uso, provavelmente, desde há séculos.

    O tio Papim merecia mais do que uma ou duas coisas que dele direi neste arrazoado, uma crónica que lhe pertencesse por inteiro . Ficará para outra vez. Todavia, para não deixar incompleta a referência aos trajes ainda em uso na fração temporal a que acima aludi, forçoso é dizer que a ele se deviam as ligas de palha serôdia demolhada que, pacientemente, entrançava e se destinavam a fazer os chapéus indispensáveis como proteção contra os rigores do sol. De suas mãos, saíam preciosidades que ainda faziam parte do rol masculino em meados do século XX.

    Desde que a Dª Cecília se aposentara, ia para muitos anos, ninguém mais concluíra o ensino primário em Alimonde. As senhoras professoras que, depois, ali foram colocadas, eram “regentes de posto de ensino”, popularmente chamadas “posteiras” que, por regra, preparavam os alunos até concluírem a terceira classe. Só em 1950 foi retomado o bom hábito de alargar o processo educativo à quarta classe. Dos quatro rapazes que, então, granjearam direito a diploma, dois fizeram exame de admissão ao Seminário e continuaram os estudos nesse estabelecimento de ensino obtendo, mais tarde, cursos superiores. Felizmente, o bom exemplo frutificou e, atualmente, há muitos cidadãos, nascidos na nossa aldeia, com estudos secundários ou superiores. Alguns ainda frequentam a Universidade. Se, até à segunda metade do século passado, a instrução estava fora das preocupações da gente rural, agora que todos reconhecem a sua importância, por ironia da vida, a maior parte das aldeias está despovoada e quase não há crianças. A Inês foi a última criança a nascer em Alimonde e tem, atualmente, onze anos.

    O recurso a cuidados de saúde ainda não constituía norma. Para muitos era luxo injustificável ao arrepio das herdadas normas de parcimónia por desperdício dos escassos teres das famílias. Desvalorizava-se o importante contributo dos recursos médicos na preservação da saúde, além de que se tornava difícil o transporte dos doentes à cidade e ainda mais complicada a vinda de um médico à aldeia, por não existir estrada digna desse nome e os caminhos ficarem quase intransitáveis no Outono e no Inverno. Só muitos anos volvidos foi conseguida uma ligação a Bragança por estrada municipal. Os contactos com o exterior faziam-se, em exclusivo, presencialmente, porque ainda não existia telefone na aldeia. A instalação do posto público aconteceu já nos anos 60.

    Os antigos caminhos da vida aldeã transformaram-se em auto-estrada onde cidade e aldeia transitam descaracterizados ao invés de outros tempos.

    *espadeladouro – tábua ou cortiço onde se apoia a mão com o linho que se espadela (in Grande Dic.º Encicl.º Ediclube – tomo VII – pág.2388; **espadela – utensílio de madeira que serve para sacudir os tomentos do linho (ibidem, ibidem, ibidem); ***tomento – parte lenhosa e áspera do linho (ibidem, tomo XVII – pág.6041); **** filaça – filamento de substância têxtil para ser fiado (ibidem, tomo VIII – pág. 2655); ***** folhatos (regionalismo) – folhas e pequenas hastes de carvalho que caem no Outono

    Por: Nuno Afonso

     

     

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