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Edição de 29-02-2024
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    Arquivo: Edição de 09-02-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    Revisitar o passado

    Ao longo de séculos, este país assinalou a sua Fé edificando locais de culto onde quer que houvesse gente. Núcleos urbanos ou rurais agregavam-se em torno de uma igreja, à sombra do poder divino. Todos contribuíam, na medida das suas possibilidades, muitas vezes com enorme sacrifício em trabalho e/ou dinheiro, para a edificação da Casa de Deus. Reis, grandes senhores, gente enriquecida nos negócios, confrarias, ordens religiosas, comunidades locais mandavam erguer templos em preito ao Senhor por graças recebidas ou só por devoção. Soberanos e nobres mostravam a sua gratidão pelas grandes vitórias ou façanhas da sua gente erigindo construções grandiosas onde a vaidade pessoal e a ostentação eram, quase sempre, envoltos em atos de piedade. O povo, organizado em confrarias, associações corporativas ou núcleos populacionais demonstravam o seu reconhecimento a Deus levantando templos em Sua honra, em honra da Virgem sob qualquer das suas numerosíssimas invocações ou de um santo intercessor.

    Em Portugal, como em qualquer dos territórios descobertos ou conquistados, a presença humana só parecia justificar-se com a proteção divina representada por uma igreja ou capela, a par dos fortes que representavam o poder militar e o defendiam dos inimigos. Nos grandes aglomerados urbanos, por cada bairro ou pequena área habitada, havia uma igreja, às vezes mais. Os países de matriz portuguesa ostentam, ainda hoje, dezenas ou centenas de igrejas, frequentemente perto umas das outras. A cidade de Salvador ou S. Salvador, no Estado da Baía, possui “tantas igrejas quantos os dias do ano” segundo diz o povo, algumas tão próximas que quase se tocam. Este exagero muito se deveu às ordens monásticas que mantinham certa rivalidade entre si e ocupavam espaços limítrofes. Em qualquer território outrora administrado por Portugal, a primazia nas edificações que atestam a presença histórica lusa é das igrejas ou do que delas resta como acontece em Macau com a frontaria da Igreja de S. Paulo, no atual Sri Lanka (Ceilão) onde o cristianismo levado pelos portugueses não criou raízes duradouras mas deixou testemunhos materiais da sua breve passagem em construções religiosas, em países do noroeste africano, na Índia e, sobretudo, nos países que por mais tempo mantiveram ligações com a antiga metrópole. Nas aldeias, a igreja situava-se num ponto central como que a proteger as habitações em redor no desempenho da sua função de mãe espiritual, conselheira e protetora.

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    Além da igreja matriz, o fervor popular de outras eras levou a que fossem plantadas capelas, mormente em locais elevados, mas também em locais aprazíveis de um extremo ao outro de Portugal. Predominam aquelas que os seus promotores dedicaram a Nossa Senhora sob designações as mais diversas: poéticas umas, curiosas outras e algumas que provocam estranheza. Habituámo-nos a ouvir chamar-lhe Nossa Senhora de Fátima, do Rosário, da Anunciação, da Conceição, da Assunção, do Bom Despacho, do Ó, dos Remédios, da Alegria, da Boa Morte, da Serra, do Monte… Já quanto aos santos intercessores, a lista é muito extensa também, incluindo nomes que talvez nem constem da hagiografia cristã mas que a tradição tem justificado na crença popular.

    Em Trás-os-Montes, inúmeras capelinhas pintam de branco o cimo dos outeiros de vegetação rasteira e bravia o que empresta à paisagem um ingénuo toque poético. A intenção de homenagear os santos nos pontos mais altos remete para a tradicional ideia de que a morada de Deus e da Corte Celeste é “lá em cima”, enquanto o inferno, os seus habitantes e os que morrem em pecado estão nas profundezas da terra.

    Não é esse o caso da ermida dedicada a Santo Amaro, situada em plaino ridente a pouco mais de um quilómetro da aldeia onde fui criado. O pequeno templo sem artifícios, como é habitual quando nasce da crença do povo simples, terá sido construído em tempos muito recuados não existindo documentos escritos ou outros que lhe comprovem a certidão de nascimento. Tão pouco é conhecida a razão do culto a tal santo, de origem romana, nascido em 512, filho de um senador e de uma dama riquíssima que, ainda jovem, manifestou aos pais a vontade de seguir a vida religiosa tendo sido entregue ao futuro S. Bento, juntamente com um primo de 7 anos chamado Plácido. Ambos vieram a merecer a honra dos altares e foi-lhes atribuída a mesma data no calendário religioso: 15 de janeiro, dia em que S. Amaro sucumbiu a uma peste que assolava a Europa em 584. Certo parece ser que, naquela área, existiu povoamento em épocas remotas e que, pertencendo ao termo da nossa aldeia, os moradores desta tivessem considerado que um lugar tão bonito quadraria bem com a homenagem que desejavam prestar ao santo. Esta ermida tem uma particularidade relativamente a outras que pontuam o nosso território: a capela tem uma casa anexa, dela separada por um caminho de terra e uma cortinha de cultivo. É provável que esta residência tenha sido erigida para moradia do mordomo ou zelador periodicamente eleito pelo povo. Quando conheci o lugar, era o lar do tio Manuel d’Além que ali criou uns poucos de filhos mas que não era responsável pela capela. Talvez a autoridade eclesiástica lha tivesse disponibilizado devido à sua carência de habitação. Não obstante o clima frio e, por vezes, chuvoso das nossas terras, a romaria manteve-se ao longo dos tempos e continua a ser muito concorrida. Terminada a Missa cantada pelo pároco e outros sacerdotes com sermão a cargo de um bom orador sacro, procedia-se à arrematação das esmolas dadas ao santo pelos fiéis, na maior parte constituídas por peças do bom fumeiro da região ainda fresco, cujos proventos se destinavam a custear despesas do santuário. Começava, em seguida, a parte mundana: o baile realizado no espaço exterior e o serviço de restauração com vinho e petiscos a cargo de quem mais oferecesse pela prestação do serviço. Atualmente, são pessoas da aldeia que, no interior da casa, preparam grelhados a quem o solicitar e servem convidados e romeiros que trazem consigo as bebidas.

    Guardo muitas e gratas recordações do Santo Amaro. Tinha 5 anos quando ingeri sementes da planta denominada Figueira-do-Inferno, erva venenosa que, não fora a atitude pronta do meu pai ter-me-ia custado a vida. Aconteceu na antevéspera da festa e, no dia 15 de Janeiro, pela mão de um pai feliz e grato à intercessão de Santo Amaro, ali me desloquei já restabelecido. Conservo na memória o gosto dos frutos de uma amoreira-da-Índia que existia num canto do adro e que nunca mais encontrei pela vida fora. Muito próximo da ermida, tínhamos um lameiro onde eu costumava conduzir e tomar conta dos animais de trabalho. Já não no dia da festa mas quando ali se realizavam outras celebrações em dias de primavera ou de verão, fazíamos piquenique sobre a relva desse lameiro. Tenho presente uma dessas refeições ao ar livre em que tínhamos por convidado um oficial do exército amigo da família que viera do Algarve e trazia alfarroba para alimentar o seu cavalo. Provei aquela semente adocicada que não conhecia e cujo paladar achei esquisito mas fiquei a saber que, além dessa utilização, tinha outras aplicações. Ao contrário dessas memórias agradáveis, sobressaiu outra que podia ter um mau desfecho. Houve um ano em que o pároco resolveu anunciar, à hora da homilia, que não seria permitida a realização do baile costumeiro nas imediações da ermida. À saída, houve protestos dos rapazes que tinham nesse divertimento, provavelmente, a maior atração da festa. O padre bem tentou acalmar os ânimos, porém os moços exaltaram-se porque alegando que essa alteração não deveria ter sido feita sem antecipado anúncio. O remédio foi conceder que realizassem o baile num sítio mais afastado da capela ainda assim não muito longe do habitual.

    Já não ia ao Santo Amaro há muitos anos. Pouco depois do Natal, a Ana informou-nos que iria à festa de Santo Amaro. Não queríamos ir com ela? O facto de a data recair num domingo justificou o nosso assentimento. Apesar da chuva miudinha que nos acompanhou ao longo do dia, gostámos de lá ter ido. Pessoalmente, tive oportunidade para rever algumas pessoas que há muito tempo não via e com as quais recordei velhas histórias de infância. Uma dessas gratas surpresas foi o encontro com dois nonagenários dos quatro que sobrevivem e fizeram parte da minha história de vida. Só por isso já teria valido a pena.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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