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    Arquivo: Edição de 30-06-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    Retaliação ou puro acaso

    Portugal nasceu neste pedacinho de terra onde a Europa se debruça no Atlântico, e foi embalado nas suas ondas que cresceu. Desde menino, buscou sustento nos frutos da terra e do mar, arando cada um deles.

    Nessas lides tomou-se forte e pagou com muito suor o que eles lhe iam dando. Aprendeu a dominar a natureza agreste que lhe coube em sorte; descobriu e aperfeiçoou os meios que lhe permitiram submetê-la e reduzir o próprio esforço; estudou os sinais naturais, os fenómenos que ia lendo na terra e no firmamento para deles retirar o melhor proveito ainda que, muitas vezes, o surpreendessem nos seus rompantes e excessos; lutou rijamente contra os imprevistos, pagando com a vida ou com graves prejuízos em inúmeras ocasiões. No decurso dos séculos, de forma empírica e, mais recentemente, beneficiando dos avanços da Ciência, pôde melhorar os resultados do seu labor reduzindo, ao mesmo tempo, o esforço para os alcançar.

    Pena foi que o progresso tenha surgido num tempo de acentuada desertificação humana das nossas aldeias e até de vilas e cidades. Ao apelo da emigração responderam muitos que se fixaram na estranja, ali criaram raízes e, aos poucos, se vão desligando da terra pátria; a consciencialização de que o aperfeiçoamento humano só é realizável pelo estudo levou outros a abandonar o chão em que nasceram, procurando, em seguida, “uma vida mais limpa” como diziam os nossos pais que lidaram sempre com a terra e olhavam com certa inveja os que ganhavam a vida nos escritórios, nas escolas, em consultórios e espaços tais e “tinham ordenado certo ao fim do mês”. Hoje, as ruas das aldeias estão empedradas e asfaltadas, há estradas a ligar as povoações, as máquinas substituíram a força animal e utensílios tradicionais, os automóveis circulam onde, não há muito, só rodavam carros de bois, o transporte urbano chegou às aldeias, permitindo um acesso mais fácil aos que frequentam estudos nas vilas e nas cidades e a quem precisa de se deslocar para fazer compras ou tratar de assuntos pessoais e familiares.

    A história ficou suspensa no tempo, passando de boca em boca à espera de alguém que lhe desse forma definitiva, com verdade, talvez um pouco de emoção. História de gente que pisou os mesmos caminhos muitas décadas antes de mim; que suportou a extrema dureza da vida no campo, amou, sofreu, riu, chorou; como ela, embebi o olhar na harmonia da paisagem, de um lado e de outro confluindo na fímbria mais longínqua do horizonte: a disposição das habitações caiadas, repousando no regaço da montanha envoltas em denso arvoredo, para o alto, terrenos improdutivos coroados por touças de carvalhos e lavras de centeio, para baixo e em redor, cortinhas bem cuidadas tendo por limite renques de parreiras e uma ou outra árvore de fruto, a veiga úbere que, ao longo de séculos, produziu linho para o enxoval das noivas e onde quase todas as famílias possuíam o seu chão, terras planas onde medravam a hortaliça, as batatas e o cereal indispensáveis à vida humana, bem como a ferrã, os nabos e o milho para sustento dos animais, caminhos de terra batida e pedra rude por onde pessoas, animais soltos e carros de bois chiando sob o peso dos produtos da terra circulavam na sua faina diária, a água das nascentes espelhando a luz do sol a correr ligeiras na sua missão de aplacar a sede das culturas, um outeiro separando a terra cultivável do carrascal onde, durante o inverno, os animais buscavam alimento, vinhas que desciam para o rio semiencoberto por amieiros, choupos, salgueiros e arbustos vários de ambientes aquáticos.

    Bem sei que entre mim e as personagens da história há diferença no olhar, o meu certamente mais idílico, o delas acima de tudo objetivo; eu vejo com os olhos da memória e a seiva do espírito, elas punham na observação, antes de mais, o sentido prático de quem age sobre a natureza para dela extrair o seu alimento, umas e outra quase se fundindo num todo orgânico. Poucas vezes terão observado o que os cercava por mero deleite, provavelmente este viria incluído no utilitarismo do dia a dia.

    Esse fora um dia como todos os outros. O tio António Nascimento saíra muito cedo para a serra e só regressaria depois que o sol tivesse descido por trás dos montes, além. A tia Conceição, que andara, de sachinho na mão, a regar a cortinha e a mondar o renovo, ultimou os preparativos para a noite que se aproximava: pôs o lato ao lume, deitou-lhe água e despejou nele os sobejos domésticos e alguns rabões 1, que trouxera na aba da saia, depois de bem lavados e cortados, além de uns punhados de batata miúda, de refugo, chamada “batata dos porcos”; abriu a portinhola da capoeira para que as galinhas entrassem e trancou-a o melhor que pôde, não viesse a raposa servir-se do que tanto lhe custara a criar; fora cortar lenha e levara para junto da lareira uma gabela 2 de guiços 3 e pequenos toros, o suficiente para fazer a ceia e manterem-se quentes nessa noite e acenderem o lume na manhã seguinte; pôs ao lume dois potes com água, um para o caldo, outro para cozer as batatas e um cibo 4 de suã, 5 temperados com sal e unto; dirigiu-se à fonte para encher uma cântara 6 de água e, enquanto chegava a sua vez e atualizava a conversa com as vizinhas, do campanário soaram,

    doces, redondas, compassadas...

    doces, redondas, compassadas...

    doces, redondas, compassadas...

    as badaladas das Trindades e todas evocaram o mistério da Anunciação e rezaram as correspondentes Ave-Marias.

    No regresso, ao subir a esca1eira 7, sentiu uma dor no ventre, coisa passageira – pensou –, atribuindo-a ao cansaço e ao peso que transportava mais do que ao seu adiantado estado de gravidez. Entrou em casa, foi buscar o lato da vianda que despejou na gamela dos porcos e subiu de novo à cozinha.

    Terminou de fazer a ceia, soltou, do escano, a mesa, cobrindo-a com toalha de linho rústico, em que depôs dois pratos de barro vidrado e talheres de ferro, dois copos de latão com água, foi escoar as batatas e despejou-as numa travessa de material idêntico ao dos pratos. O tio António devia estar mesmo a entrar porque a noite descera por completo e ela, que já ouvira o chiar do carro, mentalmente adicionou o tempo que levaria a retirar o arado do carro e a guardá-lo no cabanal, 8 a desprender o carro, a desapertar as correias que prendiam as vacas ao jugo, a retirar e guardar as molidas 9 e a tanger os animais para o curral e, finalmente, voltar a casa. Estava a colocar a travessa na mesa quando o tio António deu as boas-noites.

    Comeram em paz e sem muita conversa para além do estritamente necessário. Sendo as mulheres mais faladoras, a tia Conceição não deixou sem reparo a pontada que tivera ao subir a escaleira e a um crescente mal-estar que estava a sentir agora a ponto de quase não comer. O marido pareceu não ter ouvido porque se absteve de fazer comentários ou manifestar preocupação. Certamente, estaria absorvido na planificação do trabalho para o dia seguinte, além de ser “marinheiro de primeira viagem”, talvez pensando que “isso era coisa de mulheres” e que a indisposição logo passaria.

    Não passou, a dor repetiu-se quando a tia Conceição lavava a louça e arrumava a cozinha. Teve que se sentar à espera que o incómodo terminasse. Momentos antes, o tio António pegara no lampião e fora acomodar os animais. Ao regressar a casa, a mulher já se tinha deitado e apagara a candeia. Em circunstâncias normais, teria estranhado, uma vez que ela não parava um instante, parecia ter sempre algo a fazer. Uma vez mais, esqueceu-se de perguntar-lhe se estava melhor mesmo sabendo que ainda não devia estar adormecida. Tirou a roupa e deitou-se ao seu lado. Em poucos minutos já caíra em sono profundo.

    A tia Conceição é que não pregava olho. As dores persistiam, agora mais intensas e amiudadas. Foi aguardando na esperança de que a noite passasse rapidamente e que, mal apontasse a primeira luz do dia, o homem acordasse para lhe dar apoio, desejo que se esfumou quando teve a certeza de que a criança estava ansiosa por vir a este mundo e que o marido continuava sem dar acordo. Então, chamou com as forças que teve:

    – Tonho! Tonho!

    O homem resmungou qualquer coisa mas não recobrou consciência. Dali a pouco, ela insistiu:

    – Tonho! Tonho ! Vai por a tia Natividade e dize-le que venha cá depressa!

    Desta vez, ele deu recordo:

    – Ó mulher, espera até à por manhã! 10

    A tia Conceição ficou desesperada. Deu-lhe um valente encontrão e disse com as forças que pôde reunir:

    – Ah grande cão! Este fizeste-o mas não fazes mais nenhum, isso eu te garanto!

    Finalmente, o tio António percebeu que a coisa era séria. Levantou-se de um salto, deitou a mão às calças, enfiou os pés nos socos e correu em busca da mulher que fazia as vezes de parteira. Habituada a tais eventos, ela quase voou a socorrer a parturiente. Em poucos minutos, graças ao saber da tia Natividade, a criança não pôde logo ver a luz do dia mas foi iluminada pela fraca chama da candeia. Não sei se a tia Conceição fez valer a praga que soltou naquele instante de quase desespero mas a verdade é que não tiveram mais filhos.

    1 rabões - nome que na aldeia se dava as beterrabas ;

    2 gabela - feixe de erva ou de lenha;

    3 guiços - pontas mais finas de lenha usadas para acender o lume;

    4 cibo - pedacinho, bocado;

    5 suã - vértebras da coluna dos porcos;

    6 cântara - vasilha um pouco menor do que o cântaro. Este contém 12,5 l;

    7 escaleira - escada;

    8 cabanal - alpendre coberto para guardar alfaias agrícolas, lenha, etc.;

    9 molidas - também chamadas molhelhas, peça em couro estofado que se coloca entre a cabeça do animal e o jugo;

    10 por manhã - manhã.

    Por: Nuno Afonso

     

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