Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 28-02-2011

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    O homem e as suas circunstâncias

    A tarde descia calmosa e lenta, as crianças, em filas, violino e respectivo arco colocados no chão à frente de cada uma, dispunham--se a mostrar o que haviam aprendido nos tempos mais recentes. Era um desses dias que o Verão reclama como seus, ainda que o calendário queira desmenti-lo, situando-o já em pleno Outono. Não estivéssemos no subsolo e sentir-nos-íamos afrontados pelo calor que, na rua, apoquentava os viandantes. A sala tinha um aspecto confortável e bem comportado: os pequenos alunos, em pé nas respectivas “casas”, como soldados em parada, despojados da sua irrequietude face ao semblante, simultaneamente austero e afável da professora, aguardavam que esta lhes desse indicação para saudarem o público, pais ou avós, uma vez instalado no auditório em condições de assistir ao desempenho dos músicos mirins.

    Com a primeira fila ocupada por familiares e pelos estojos dos instrumentos, fui sentar-me imediatamente a seguir, num lugar donde podia acompanhar a Matilde sem dificuldade, relanceando o olhar pelos ocupantes das cadeiras vizinhas. Ninguém conhecido do ano passado! A minha neta mudara de horário, aquelas caras não se abriam para estranhos, parecia não terem reparado no vizinho de ocasião. O meu cumprimento formal de boa-tarde não teve retorno ou talvez tivesse sem que eu me haja apercebido. Trazia comigo um livro, hábito que cultivo não só para matar o tédio em momentos vazios mas, acima de tudo, para alimentar o espírito, mantê-lo em actividade criativa. Desta vez, o meu companheiro identificava-se como “A Montanha Mágica” de Thomas Mann, qualquer coisa como 832 páginas de literatura escorreita. Enquanto os mais novos aprimoravam os seus dotes musicais penetrava eu no mundo ficcionado de um jovem alemão nascido em Hamburgo e acabado de chegar ao sanatório Berghof a quem o médico prescrevera três semanas de permanência naquele lugar de ares lavados, capaz de restaurar-lhe as forças físicas e anímicas tão necessárias a um futuro engenheiro de construção naval.

    – É uma obra excelente! – opinou um senhor, aparentemente da minha idade, as longas pernas estendidas e um braço descansando sobre o encosto da cadeira que nos separava.

    – Desculpe, falou comigo? – interroguei, assinalando o espaço da narrativa e voltando-me para o cavalheiro.

    – Esse livro. É muito bom, não acha?

    – Ainda não posso dizer, estou pouco mais do que a começar a leitura.

    – Já tinha lido algum livro desse autor?

    – Li, há muito, “Os Buddenbrook” que deu origem a uma série televisiva da RTP. Já passou tanto tempo que mal me recordo do enredo. Sei que me causou boa impressão e que o autor tinha recebido o Prémio Nobel da Literatura em…

    – 1929 – lembrou ele, com a maior naturalidade.

    Thomas Mann (Lubeck, 1875 - Zurique, 1955)
    Thomas Mann (Lubeck, 1875 - Zurique, 1955)
    E mais não disse, ou porque esperava encontrar um interlocutor capaz de manter consigo um diálogo enriquecedor, deparando com um alguém ainda pouco versado na matéria ou porque entendeu que não era o local indicado para uma conversa que, certamente, causaria perturbação na principal actividade que ali se desenrolava. Não voltámos a falar desde essa ocasião. Eu costumo chegar um pouco mais tarde, ele sai dez minutos antes de terminar a aula. Agora que vou caminhando para o fim da leitura, talvez fosse o momento oportuno para trocarmos impressões acerca da obra.

    É provável que poucos se tenham abalançado a percorrer tão longo caminho. Um bom leitor, no entanto, não receia o tamanho da obra. Não é leitura fácil, para quem pretende chegar depressa ao fim da história, porque o autor demonstra uma impressionante erudição que verte em muitas páginas descritivas. Nada parece estranho a este grande escritor. Embora determinado a conduzir a narrativa com base na antinomia entre o espírito e a vida e nas mudanças que daí resultam, enriquece-a recorrendo às Ciências Naturais, em especial à Botânica, à Engenharia (Naval), à Fisiologia, à Literatura, à Teologia, à Filosofia, à Psicologia, à Sociologia, de que revela seguros conhecimentos, além de apontamentos sobre outras matérias. Em contacto com a doença, Hans Castorp, o protagonista, dá expansão à sua personalidade e descobre realidades espirituais diversas que são, mais tarde, postas em causa perante a crueza da guerra e o desenvolvimento das relações humanas. As três semanas de estada que o médico lhe prescrevera, prolongam-se por tempo indeterminado a partir do momento em que o termómetro persiste em revelar-lhe ligeiros picos de temperatura com reduzidas alterações a cada medição, e o médico director do sanatório descobre um foco húmido nos seus pulmões. De visita que era até então, passa a hóspede permanente e assume-se como enfermo em condições idênticas às dos demais internos do Berghof.

    A partir do momento em que termina o seu curso de Engenharia e é aconselhado a viajar para aquela estância famosa nos Alpes suíços, desata-se o nó da mudança que vai operar-se decisivamente ainda que sofra inflexões, desacelerações, retomando, em seguida, novo ritmo. «Quando tomamos o fiacre para a estação, ainda nem sonhamos como dois dias de viagem nos poderão afastar da nossa vida de todos os dias – sobretudo quando se é jovem, quando as raízes na vida ainda são pouco profundas – de tudo aquilo que acreditávamos serem os nossos deveres, os nossos interesses, objectivos e cuidados. O espaço que rodopia e se esfuma entre o viandante e a sua terra natal contém uma força que geralmente julgamos ser mero privilégio do tempo. As transformações que vai operando pouco a pouco no nosso íntimo assemelham-se muito às do tempo, sendo-lhe, porém, em certo sentido superiores. À imagem do tempo, também ele produz esquecimento, mas fá-lo libertando--nos das nossas obrigações, transportando-nos para um estado original…/…/ Compara-se frequentemente o tempo ao rio Letes *, mas também o ar de paragens distantes actua como uma poção mágica e, se o seu efeito é menos profundo, não será decerto mais lento».

    A mudança de espaço é, neste caso, mais decisiva visto tratar-se da sua primeira experiência; já quanto ao tempo, Hans Castorp partia convicto de que estaria de volta em poucos dias para iniciar uma carreira profissional nos estaleiros navais, garantido que estava o seu lugar na firma Tunder & Wilms que operava na cidade portuária de Hamburgo, sua terra natal.

    No Berghof vai juntar-se ao primo Joaquim, jovem cadete que recolhera àquele sanatório já com doença pulmonar diagnosticada. Juntos travam conhecimento com outro interno, Settembrini, um italiano que faz alarde da sua cultura humanística e que, aos poucos, tenta incutir-lhes os seus valores espirituais como os únicos que respondem às inquietações humanas. Castorp é um rapaz inteligente e ávido de novos conhecimentos mas preserva a sua independência intelectual ante a pretensa superioridade do amigo que sabe utilizar magistralmente a ironia e até o sarcasmo no relacionamento com a população do estabelecimento. Joaquim, vocacionado para a carreira militar, acompanha o primo mas furta-se ao esgrimir de argumentos entre Hans e Settembrini. Há uma aproximação cautelosa entre o humanista e o “senhor engenheiro” como aquele gostava de chamar a Castorp. O jovem hamburguês registava as posições do outro mas abstinha-se de entrar em confronto opondo-lhe as próprias ideias. Disso encarregou-se Naphta, personagem curiosa, de origem e educação judaica, atraído para o catolicismo e para um seminário jesuíta, impossibilitado, porém, de receber ordens devido à doença pulmonar que afectava todas as outras personagens da obra mas que não residia no sanatório. Ele e, a certa altura, Settembrini, que deixara o Berghof, viviam numa povoação próxima embora ali acorressem para receber tratamento. Curiosamente, viviam na mesma casa mas em pisos diferentes, saíam juntos e terçavam argumentos. Naphta defendia concepções ideológicas bem diferentes das de Settembrini e mesmo conflituantes. Daí resultavam discussões acesas e, passo a passo, mais agrestes até desembocarem numa tragédia.

    Em simultâneo, e como era natural numa comunidade de homens e de mulheres, os sentimentos vão-se revelando, alteram-se, postergam-se, confluem. Castorp observa o mundo feminino que o cerca, reflecte acerca dos comportamentos da senhora X ou da menina Y, mostra-se chocado com a atitude brusca de uma tal senhora Chauchat que bate, com estrépito, a porta da sala de jantar sempre que os comensais já ali se encontram, como se fora um tufão. Aos poucos, essa senhora eurasiática de olhos rasgados e maçãs do rosto salientes, torna-se dona do seu coração a ponto de o nosso herói estar disposto a renunciar, definitivamente, ao “mundo da planície” para ficar ali com ela. O tempo, o espaço, a vida, no alto da montanha, são de natureza diversa, ele quer ficar ali para sempre. Já não é o rapaz sonhador que tem uma vida traçada à sua medida no mundo que abandonou sete anos antes e ao qual não quer regressar.

    * Rio Letes - Rio do esquecimento (mitologia grega).

    Por: Nuno Afonso

     

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].