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    Arquivo: Edição de 20-12-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    Predestinação

    Nasceu com a marca dos predestinados. Não teve coro de anjos, não havia pastores pelos montes a guardar rebanhos e, num mundo em que impera o dinheiro e fenecem os valores, poucos acreditam na ocorrência de algo capaz de acudir aos males que escravizam a humanidade e lhes faça recuperar a esperança, razão pela qual nenhum Mago cavalgou na senda de uma estrela rara que o guiasse ao encontro da criança recém-nascida.

    Semelhanças entre os dois nascimentos só o tempo em que ocorreram – a crermos que o Natal foi, de facto, no solstício de Inverno há vinte e um séculos – e a extrema pobreza de um e do outro. Crê-se que a Igreja Cristã, pretendendo difundir a nova religião, “ocupou” dias de festas pagãs com os factos mais relevantes da vida de Jesus. A celebração do nascimento do Salvador foi estabelecida no dia 25 de Dezembro apenas no século IV. Por essa ocasião, celebravam-se as Saturnais romanas, a chegada do Inverno entre os bretões e o “Nascimento do Sol Invicto” em honra de Mitra, deus indo-iraniano da luz, do calor e da fecundidade.

    Estoutra criança era uma menina e a mãe deu-lhe o nome de Celeste, o mais adequado, no seu entender, a quem Deus lhe enviava no tempo que Ele próprio escolheu para iniciar a Sua vida enquanto homem e que, por essa razão, seria um presente do Céu. Embora pouco esclarecida em matéria religiosa, possuía conhecimentos bastantes para fazer esta ligação e para ajuizar também que o nome seria uma espécie de talismã que havia de protegê-la pela vida fora. Mas nada parecia endossar tal presunção por muitos e variados motivos de que cito os mais notórios: não fora objecto de qualquer profecia; nascera em família desestruturada, como agora é moda dizer-se, em que o pai desaparecera ainda antes de ter nascido o filho mais novo; pertencia ao sexo feminino; era estranha a qualquer grupo social além do núcleo familiar; não tinha amigos (as) com quem brincar e não conhecia outros parentes.

    Se Jesus nascera numa gruta estranha, sem outro agasalho além do bafo de uma vaca e de um jumento, mas sob a protecção da mãe e do pai adoptivo que, na sua aldeia de Nazaré, possuíam uma casa humilde e o frugal sustento proporcionado pela arte de carpinteiro que José exercia, Celeste viera ao mundo numa barraca de madeira e chapa de zinco, meio apodrecida pela chuva e enganosamente protectora onde, juntamente com a mãe e dois irmãos, procurava resistir ao frio e à intempérie com trapos que logravam descobrir na enorme lixeira para onde milhares de habitantes de uma cidade média da província enviavam os detritos do seu viver quotidiano. Era ali também que mãe e filhos procuravam sobejos de mesas mais abundantes, disputados a outros irmãos na miséria, além de objectos que poderiam ser-lhes úteis.

    Não se limitavam, porém, a vasculhar os restos de uma sociedade consumista e tantas vezes distraída em relação aos menos favorecidos. Mãe e filhos procuravam, separadamente, lugares concorridos, de preferência esplanadas de cafés ou confeitarias, a pedir ajuda que dispensava outra justificação além da que era patente aos olhos de todos. Havia uma generalizada repugnância ante a aproximação daqueles miúdos desgrenhados, sujos e malcheirosos que originava o pedido feito pelos clientes aos empregados para os afastarem dali. Implícita estava a ideia de que eles apresentavam um grande défice de humanidade, (?) seriam assim a modos que uns bicharocos incomodativos cuja simples presença podia pegar-lhes coxo* e, seguramente, estragavam o apetite aos bem-instalados que frequentavam esses estabelecimentos de restauração. Raros seriam os que, sem preconceito, tentavam ler, sob aquela desagradável máscara, traços de beleza que todas as crianças transportam, algumas de forma peculiar.

    E a excepção aconteceu. Numa tarde calmosa de Junho, percorria Celeste o seu calvário em rua de largo passeio com dezenas de pessoas em busca de momentos de felicidade numa bebida refrescante e em bate-papos geralmente vazios, com ilustração de sorrisos desenhados ou em fundo de sonoras gargalhadas. À medida que a pequena se aproximava, diminuiu a descontracção, o vozear alegre volveu-se em quase surdina, houve rostos contraídos e inospitaleiros, fez-se a unanimidade dos olhares como se uma vaga de frio tivesse arrefecido a atmosfera estival. De repente, um gesto amigável, um rosto que se iluminou em meio à escuridão reinante. Receosa, a menina abeirou-se daquela mesa onde uma mulher ainda jovem, acompanhada por duas amigas, levava aos lábios uma chávena de chá.

    - Vem cá, meu anjo, como te chamas? – ouviu pronunciar com grande doçura e convicção.

    - Celeste.

    - Bonito nome e tu também és muito bonita. Queres um bolo? – disse, estendendo-lhe um prato de magnífico aspecto.

    A menina hesitou, olhou para a senhora que oferecia e para cada uma das acompanhantes, admirada com o inesperado convite, ganhou coragem e pegou num bolo que mastigou avidamente. As três mulheres olhavam-na com simpatia. A que a convidara chamou o empregado que, à semelhança dos clientes, não tirava os olhos daquela cena inusitada, pronto a intervir para enxotar a intrusa:

    - Embrulhe estes dois bolos e traga mais para a mesa, se faz favor.

    E dirigindo-se novamente à criança, agora mais tranquila:

    - Onde estão os teus pais, minha querida?

    - A minha mãe anda a pedir. E os meus irmãos também.

    - E o teu pai?

    - Não sei.

    A senhora entendeu que Celeste ficara constrangida e não insistiu. Quando o empregado voltou, entregou-lhe o pacote dos bolos, passou-lhe a mão pelo rosto e disse:

    - Diz à tua mãe que espero por ela amanhã, naquela esquina – e apontou-lhe o local – estarei ali a esta hora. Não te vais esquecer?

    Celeste respondeu que não com um gesto de cabeça e saiu ligeira, deixando que todos respirassem de alívio, agora com mais um tema de conversa.

    No dia seguinte, a mãe da miúda lá estava no lugar combinado. A senhora esperava-a com um saco onde trazia roupa, calçado e alguns alimentos para ela e para os filhos. Quis saber o que acontecera ao pai deles. Disse-lhe, por sua vez, que era casada mas que não tinha filhos. Depois do encontro com a Celeste, falara com o marido e tinha uma proposta a fazer-lhe. Se ela estivesse de acordo, ficaria a trabalhar em sua casa e, conjuntamente, cuidariam das três crianças. Para começar, todas iriam ser matriculadas na escola. A proposta foi aceite, mas havia ainda aspectos que exigiam cuidada ponderação como a procura do pai desaparecido e as possíveis consequências do seu encontro.

    Anos passaram. A mãe da Celeste revelou-se um excelente apoio da família e delegou no casal a responsabilidade de darem aos seus filhos a educação mais apropriada. Não obstante o empenho do casal, o pai dos miúdos não foi encontrado, provavelmente teria morrido e, uma vez que não houvera casamento formal, o óbito não fora comunicado à companheira desconhecida. Os dois irmãos da Celeste, ambos rapazes, tiveram diferentes desempenhos na escola e na vida: o mais velho terminara, a custo, o curso técnico-profissional e fundara uma empresa de artigos eléctricos e electrónicos com o apoio do pai adoptivo, engenheiro numa conhecida firma multinacional; o benjamin, apaixonado pelo desporto, licenciou-se em Educação Física e seguiu a via do ensino. Quanto à Celeste, tornou-se uma linda moça, algo tímida, em resultado das humilhações que teve de suportar na primeira infância, mas encantadora no trato e, em extremo, generosa. Dotada de grande inteligência, aluna aplicada, seguiu medicina, à semelhança da mãe adoptiva, optando pela especialidade de pediatria. Casou com um excelente rapaz e não sei se foram felizes para sempre, como nos contos de fadas, mas é bem provável que sim.

    * Coxo – erupção ou irritação cutânea atribuída ao contacto da pele quer com um animal considerado peçonhento quer com algo que tenha estado em contacto com este. (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, vulgo Dicionário da Academia).

    Por: Nuno Afonso

     

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