Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 10-10-2010

    SECÇÃO: Destaque


    Álvaro Mendes – quando a vida é uma obra!

    Foto ARQUIVO CPN
    Foto ARQUIVO CPN
    Em 1989 descobri o Mendes, o Álvaro Mendes. Pela sua mão, entrei para a Comissão de Gestão do CPN. Nunca mais o perdi. Um homem nunca se perde.

    Desde Maio de 2008 que, insistentemente junto do Mendes, procurava trabalhar na sua biografia. Não foi tarefa fácil. O Mendes tardava em cooperar e eu insistia em continuar. Finalmente lá cedeu. Chamou-me, falámos sobre a biografia, as fontes, os contactos, os actores, os acontecimentos e os documentos. Dias depois, disponibiliza-me parte do seu vastíssimo espólio fotográfico, também ele, pe(r)dido em parte incerta…

    Durante longos meses, aceitei ouvir e registar cumplicidades e (con)vivências de um excelente guardador de histórias e de segredos. Em cima dos seus invejáveis 84 anos, o Álvaro Mendes confrontava a sua vida com a nossa História.

    Conheço o Mendes, o Álvaro Mendes. Não esperava, nas trocas do destino, recorrer tão cedo à matriz do epitáfio. A minha relação com o Mendes, já só admitia vida na História e não a História da Vida. O Mendes deixou-me só e a meio do seu percurso biográfico. Jamais saberá quais as palavras escolhidas para o preâmbulo de “Álvaro Mendes: Quando a Vida é uma Obra”.

    É-me mais fácil falar sobre o Mendes do que dele fazer escrita. Nestas circunstâncias, a oralidade do discurso não se compadece com a narrativa dos actos nem com os gestos dos actores. Ambos atrapalham e só nos deixam uma saída: aligeirar a escrita e sobre o Mendes falar.

    A dimensão humana e voluntariosa da capacidade pró-activa de Álvaro Mendes mostrou um percurso insaciavelmente introspectivo e uma peculiar vontade e bondade ao outros, estigmas de uma sociedade rural e mística que o acolheu, ainda enraizada nos profundos anseios locais, mas cuja visão despertara, bastante cedo, a quem acabara de chegar da freguesia de Castelões de Cepeda, no vizinho Concelho de Paredes.

    Os seus traços de um tímido aventureiro, teimosamente rebelde e persistente voluntarioso, davam-lhe no tempo que sempre escasseava, vontades próprias de viver, temperando, no mundo e na família, a racionalidade das suas emoções e afectos. Não se compreendia o Mendes, o Mendes era simplesmente compreendido.

    De geração em geração, trazia novas e diferentes fornadas de gente miúda, órfãos de destinos ausentes, companheiros da borga, amigos do sempre que com eles contava. O Mendes era assim, pois. Até parecia que a vida se moldava a ele, oleiro de Homens e de Campeões.

    O Mendes ocupava-se da vida quando esta não o ocupava. Mas foram poucas as vezes. Da Fábrica da Cerâmica, recordava e recontava como sozinho fez a estrutura dos fornos e como a boa nova veio a saber-se em Lisboa. Lá os engenheiros nem queriam acreditar. Daí a pouco tempo, já recebia a confiança do Sr. Director e acompanhava nos negócios da Empresa. Só nunca chegou a perceber foi a Contabilidade Criativa que à época os directores faziam nas negociatas dos terrenos para extrair a matéria-prima e os Relatórios Anuais sem Controlo de Qualidade… outros tempos!...

    O Mendes não se deixava enganar. Ficava com a pulga atrás da orelha e mais adiante fazia a espera. Safado! O Mendes era vivido.

    Sabia quando era usado e para que fins. Nunca aceitando o rótulo de ser Imagem de marca, o Mendes não se sentia à vontade com as marcas deixadas na imagem. Preferia estar de bem com todos. Afinal a sua política era o CPN, o Ténis de Mesa e… as crianças.

    Num dos muitos encontros agendados, encontrei-o derretido com a vaidade da notícia que recebera. Um recorte de jornal mostrava um familiar que fora recentemente ordenado bispo. Falava dos amigos que fizera, das diferentes crises directivas no CPN, dos antigos directores, do seu Belenenses e das fotos dos filhos dos amigos que, deixadas num álbum, guardavam do Mendes outros dias com maior paciência na arrumação.

    Entre papéis, fotos e anotações, o Mendes, enquanto desfiava momentos outrora vividos, lá me perguntava se tinha estado com este ou aquele e mais novas do novo CPN.

    Na rua ou fora dela, sempre que abordava uma criança, lá vinha o número do costume e em replay. Simulava uma bofetada na perna e tirava uma gargalhada de um pequenote, filho ou parente de alguém conhecido. Coitada da perna…

    Quando o Mendes não falava, nós falávamos por ele.

    Aos nossos olhos, o Mendes não tinha só defeitos. Tinha também virtudes. Boas virtudes. E a maior era a sua impiedosa queda para o esquecimento e distracção. Punha-nos a cabeça em água quando se lembrava de nos fazer procurar os óculos que permaneciam, há muitas horas, enterrados na cabeça. Outras vezes, andávamos de rabo para o ar à procura da esferográfica que residia atrás da orelha ou das chaves da Sede que deixara em casa. Era o cabo dos trabalhos. Este era o nosso Mendes. Mais distraído do que nunca.

    Tempos houve que quando o Mendes não se esquecia de mais nada, esquecia-se de nós. Depois de sair da Câmara de Valongo onde era funcionário, o cansaço conduzia-o ao Justino dos Colchões. Aqui, só uma cadeira lhe amparava o sono. Um sono de menino adulto. É o Mendes, está claro. Todo o homem que se preze é uma verdadeira criança.

    E são estas – só estas – que mais sentirão a sua falta. A vida de Álvaro Mendes deixa obra e recordações. Boas recordações.

    E estas, nunca morrem, Mendes!

    Por: José Manuel Pereira

     

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].