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    Arquivo: Edição de 15-05-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    Tempo de amores

    Acordou com um violento estrondo como se o navio tivesse embatido num recife ao mesmo tempo que era atirado para fora da cama e os seus objectos pessoais, arremessados ao chão, deslizavam de um lado para o outro do camarote. O navio parecia um berço a oscilar lateralmente. Alguns dos seus companheiros de viagem, que se tinham levantado antes, sofreram ligeiros ferimentos, nada porém que os inquietasse. Estavam na Terra Prometida, tudo o resto não tinha importância. Não esperavam aquele incidente mas sabiam, pela voz do comandante, que chegariam ao destino nessa manhã. Excitados, acordaram cedo e já estavam prontos para desembarcar no momento em que o casco do transatlântico embateu no muro do cais. Ricardo agarrou-se como pôde para não ser também vítima do forte baloiço da embarcação. Houve ainda outros choques menores mas, pouco a pouco, o embalo foi diminuindo até ser restabelecido o movimento normal. Aos gritos e exclamações suscitados, ali como em todos os camarotes, pelo baque do navio, sucedeu o barulho de pessoas que corriam pelas coxias, falavam alto, chamavam umas pelas outras, arrastavam malas e ascendiam ao convés para presenciar a atracagem do Highland Chieftain da Mala Real Inglesa ao cais da Praça Mauá no Rio de Janeiro.

    Ricardo fez uma rápida higiene pessoal, vestiu o fato novo que a mãe mandara fazer ao Chico Canteiro de Vila Boa, calçou os melhores sapatos, meteu todos os seus pertences na mala que fechou cuidadosamente e seguiu na companhia dos outros ocupantes do camarote. O convés encontrava-se apinhado, cada qual tentava encontrar uma nesga de espaço para se debruçar na amurada e parecia difícil arranjar maneira de ver o espectáculo que se desenrolava no exterior, mesmo para ele que era um lingrinhas que parecia caber no buraco de uma agulha. No entanto, pôde contar com a boa-vontade de alguns passageiros já instalados que “bateram cunhas” para lhe disponibilizar alguns centímetros e aos seus olhos ofereceu-se o primeiro quadro da terra que viria a ser a sua segunda pátria: ao fundo, edifícios antigos pintados de ocre bastante danificados pela maresia; em primeiro plano, uma multidão que enchia o cais, agitando lenços, na direcção dos recém-chegados, alongando braços para determinados pontos, gritando nomes enquanto manobreiros executavam as derradeiras tarefas de acostagem e desembarque, estivadores transportavam cargas e funcionários procediam às formalidades oficiais empunhando papéis entre o navio e os escritórios da alfândega.

    Do seu precário miradouro não conseguiu enxergar o tio José que prometera ir recebê-lo e transportá-lo ao seu futuro domicílio. Havia já algum tempo que não se viam, era natural que não o reconhecesse no meio de tamanha agitação. E se ele não tivesse vindo? Sozinho, numa terra estranha, com vagas referências sobre o lugar onde o tio morava e também ele passaria a residir, que havia de fazer? Chamar um táxi, diríamos nós que vivemos num tempo mais evoluído, mas ninguém lhe dera indicações a tal respeito e, na sua timidez de rapaz da aldeia, sentiu o coração apertado, imaginando as piores situações. Foi nesse estado de espírito que se encaminhou para a saída, esforçando-se por carregar a mala dos seus pertences e só quando pisou o chão desse novo país é que viu o tio a caminhar, sorridente, na sua direcção. Também ele abriu um largo sorriso que correspondia ao somatório da alegria em rever o tio que muito estimava com o alívio de saber que tinham desaparecido os seus piores receios.

    Nos anos 50 do século passado, as grandes cidades brasileiras albergavam dezenas de milhares de portugueses e de portuguesas que, ao longo de vários decénios, para lá haviam transferido as suas vidas. Muitos ali haviam constituído família, outros tinham levado de Portugal cônjuges e filhos, contribuindo para o aumento das populações locais e para o desenvolvimento das comunidades onde se instalaram. Ricardo tinha outros familiares junto dos quais o tio criara dele uma imagem muito favorável: rapaz bonito, inteligente e com adiantada frequência nos estudos em Portugal, deste modo despertando a curiosidade da parentela.

    Pouco depois de ter chegado, já uma das suas primas telefonava a perguntar como correra a viagem e, entre risinhos marotos, indagava se não gostaria de conhecer o Rio de Janeiro, oferecendo-se, claro está, para o acompanhar. No dia seguinte, dissera, o seu pai levá-los-ia aos lugares mais conhecidos da então capital do país e ela teria muito gosto em explicar-lhe tudo acerca desses monumentos e da sua história.

    Metido no seu fatinho europeu, a concitar a atenção de quantos viam aquele portuga tímido e desajeitado que não atinava o que fazer às mãos na companhia de uma bela morena desenvolta e loquaz, teve ocasião de conhecer desde o Corcovado ao Pão de Açúcar, do Jardim Botânico ao Parque da Cidade, da Cinelândia ao Centro, as praias da Zona Sul (Copacabana, Ipanema, Leblon) e a Lagoa Rodrigo de Freitas, mas o nervosismo impediu que usufruísse plenamente de tanta beleza. O que mais profundamente o tocou foi a cicerone cuja figura e maneiras despertaram em si emoções até então desconhecidas.

    Outras primas e patrícias quiseram conhecê-lo e viu-se envolvido em novas relações, convidado para festinhas de que se tornou a figura central, contudo não se afastou daquela que primeiro o tinha apoiado. Distante ia ficando a namorada que deixara em Portugal. Agora, julgava-se de todo apaixonado por essa moça surgida dum vago nome, Emília, que a mãe referia quando chegava carta desses familiares próximos. Daí em diante, sempre que o trabalho lhe permitia, deslocava-se a casados pais dela, conversavam longamente e satisfazia-lhes a curiosidade acerca da terra de origem e da família que há muito não viam. Pusera de parte as roupas europeias e vestia-se de acordo com o clima e o estilo brasileiro. Aos poucos, ia perdendo a timidez inicial, enturmou-se rapidamente e saía com os amigos que já fizera à praia, ao cinema, ao futebol. Gostava de ir ao estádio de S. Januário assistir aos jogos do Vasco como quase todos os portugueses. Mas nada lhe dava mais prazer do que o convívio com a família da Emília pelo facto de estar a seu lado conhecendo um pouco da sua vida, dos seus gostos, ouvindo-a contar histórias do colégio em que estudava naquele seu jeito alegre e fantasista à boa moda brasileira. Ricardo notava que também não lhe era indiferente e que os pais dela viam com agrado a aproximação dos dois jovens. Findava-se a década de 50 e a sociedade regia-se pelos valores tradicionais, incluindo o relacionamento entre os jovens. Os namoros eram, muitas vezes, patrocinados pelos pais das moças e os encontros com possíveis pretendentes não ultrapassavam os muros da residência, sendo os momentos de maior intimidade controlados e graduais.

    Quando tudo parecia caminhar no bom sentido, o pai da Emília, que tinha negócios em S. Paulo, comunicou à esposa e aos filhos que, “a muito curto prazo” iriam mudar para aquela cidade. A ideia não agradava nem à Emília nem ao seu irmão Fernando porém as circunstâncias é que determinam o rumo a seguir e, neste caso o dinheiro impunha a sua lei. Em breve, arrendavam casa em S. Paulo e para lá transferiam a residência da família. A Emília e o Fernando foram inscritos em bons colégios da capital paulista. O Ricardo sofreu enorme desgosto, embora não houvesse entre ele e a Emília um namoro formal. Despediram-se na véspera da partida e prometeram visitar-se com regularidade mas ambos sabiam que nada seria igual dali em diante.

    Ainda se viram algumas vezes quando o pai da Emília viajava em negócios mas tudo era programado, limitado quer pelos afazeres do pai, quer pelos horários de trabalho do Ricardo. Escreviam-se, é verdade mas, aos poucos o relacionamento entre eles foi-se espaçando cada vez mais…

    Por: Nuno Afonso

     

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