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    Arquivo: Edição de 15-03-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    Herdeiros da Utopia

    Os poetas são os melhores intérpretes da alma humana e, cada qual a seu modo, traduzem, nos seus versos, as emoções de todos nós. António Gedeão soube definir, com a luz do génio, o traço essencial que nos caracteriza: «Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida…».

    Há sonhos recorrentes em determinadas épocas da vida, dependendo da sensibilidade e das vivências, pulsões, anseios e obsessões de cada um. Todos sonhamos, a dormir ou acordados, porque o nosso pensamento é dinâmico e permanente.

    Quem não se representou personagem de contos de fadas ou de aventuras heróicas? Convido, pois, o leitor a imaginar que é filho de um ilustre e valoroso fidalgo, que possuía castelos e palácios, terras, rendas e senhorios. Era um homem ambicioso e destro no uso das armas, inteligente e arguto na forma de apreender as situações e delas tirar o melhor proveito, perseguindo objectivos claramente delineados e usando as estratégias mais avançadas para os atingir. Deste modo, pouco a pouco, à frente de um punhado de guerreiros e serviçais, foi alargando os seus territórios, por descoberta e conquista, até se tornar dono de um império milhares de vezes maior do que o património que em herança tinha recebido. Possuía domínios em todos os continentes, deles auferia imensas riquezas que lhe conferiram um prestígio inigualável. Assim foi durante bastantes anos enquanto as forças lho permitiram e os caprichos da vida o favoreceram. Mas, um dia, a roda começou a desandar e as vastas propriedades, que tanto esforço lhe tinham custado, perderam-se, umas por conveniência, outras por necessidade, outras ainda por impossibilidade em mantê-las. Chegou a altura em que pouco mais lhe restou do que o núcleo original de todo o seu poderio. No entanto, em cada uma das parcelas que lhe pertenceram deixou um precioso tesouro que beneficiou, por igual, os seus habitantes.

    Aqui chegados, os leitores já compreenderam que utilizei uma alegoria para lembrar quem somos e o que representa esse património que nos legaram e tantas vezes maltratamos sem cuidados nem remorsos. O ilustre e valoroso fidalgo é Portugal que, de um pequeno condado, dependente de outro maior, ganhou a sua independência, construiu um país, expulsando os mouros que se tinham apoderado de terra cristã e empeciam a sua lógica progressão rumo ao sul. Pequeno de mais para gente que olhava para a terra e para o mar e não reconhecia por legítima a fronteira natural do horizonte. Beligerante, intentou, durante séculos, chamar a si os reinos vizinhos tal como estes lutaram para se apoderar do pichote irrequieto e atrevido, tendo-o conseguido por breves sessenta anos. Passou a África onde conquistou praças que julgou de grande importância comercial e estratégica. Simultaneamente, concebeu projectos ainda mais arrojados e quiméricos: chegar à Índia por mar e assim apoderar-se do riquíssimo comércio das especiarias, até aí nas mãos de mouros, venezianos, genoveses e outros.

    Partindo de bases científicas, elegeu um caminho diferente, construiu naus e caravelas, estudou o regime de correntes marítimas e de ventos, inventou instrumentos e técnicas de navegação, observou os mapas existentes e decidiu confrontá-los com a realidade. Descobriu arquipélagos e escolheu o tempo certo para os reclamar. Ao longo de algumas décadas, os seus homens navegaram em muitas direcções, encontraram novos territórios mas houve sempre um objectivo que sobrepujou os demais: a rota das especiarias. Seguindo a costa de África, redesenhou este continente, demarcou os lugares importantes com padrões e mandou erguer fortalezas, decifrou o mistério do extremo sul onde Atlântico e Índico se encontram, contrariando cartógrafos e geógrafos que defendiam o seu prolongamento para a zona antárctica, fez a conexão entre os dois oceanos e chegou à Índia. Enfrentou e venceu árabes e mamelucos e escreveu páginas heróicas, verdadeiramente inverosímeis contra a tenaz oposição do rei de Calecut, instigado e apoiado pelos árabes. Construiu ali um novo reino continuamente fustigado por ventos de inveja e marés de cobiça. Na Europa, a façanha dos portugueses, o enorme prestígio que o país granjeou e as riquezas que passou a ostentar levaram holandeses, ingleses e franceses (estes, sobretudo no Brasil, na esperança de estabelecer uma França Antárctica representada por Nicolau Durand e Villegaignon) a procurar os segredos dessa quase inacreditável proeza. Os holandeses só conseguiram chegar à Ásia (ilha de Java, hoje parte da Indonésia, em 1596, quase um século após a viagem de Vasco da Gama); os ingleses fizeram a mesma tentativa em 1591 com três naus que desapareceram na viagem, tentaram, de novo, em 1596 sem sucesso e só em 1602 uma nova frota britânica acostou também em Java onde instalaram uma feitoria e acabaram por chegar à Índia em 1611 estabelecendo um entreposto em Surate). É bom não esquecer que a nossa independência foi perdida em 1580 e restabelecida em 1640.

    O império português no Oriente foi a realização mais espantosa de uma utopia, a prova de que, pela inteligência, a coragem e, quase sempre, a temeridade, é possível alcançar o que se julgava além “do que prometia a força humana”. Mas Portugal realizou ainda outra utopia ao conseguir manter a unidade territorial do Brasil, 90 vezes maior em tamanho, contra, franceses, holandeses, ingleses e espanhóis. Foi caso único na história: a América espanhola fraccionou-se em dúzia e meia de nações, a América inglesa não passava das treze colónias iniciais, ou seja, um terço dos Estados Unidos actuais, os restantes dois terços foram-lhe acrescentados por compra (Louiziana, Califórnia, Oregon, Alaska, Novo México e Texas). No entanto, o bem mais precioso que legou ao mundo foi a gloriosa Língua Portuguesa que, actualmente, é falada por mais de 260 000 000 de pessoas, é, como língua nativa, a 5ª mais falada da Terra e a 3ª do mundo ocidental. Os falantes distribuem-se deste modo: 190 000 000 na América do Sul, 16 000 000 em África, 12 000 000 na Europa, 2 000 000 na América do Norte e 330 000 na Ásia.

    O Português é o idioma oficial de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, S.Tomé e Príncipe, Timor-Leste e, desde 13 de Julho de 2007 da Guiné Equatorial. É uma importante língua de comunicação e de trabalho em Andorra, Luxemburgo, Paraguai, Namíbia, Ilha Maurícia, Suiça e África do Sul. É também falada em Goa, Damão, Diu, Ilha de Angediva, Simbor, Gorgolá, Dadrá e Nagar-Aveli. Tem variantes dialectais em partes do subcontinente indiano, no Sri-Lanka (antiga Ceilão), onde foi língua franca durante 350 anos, e deu origem a cerca de 20 línguas crioulas entre as quais o Tétum falado em Timor-Leste e o crioulo cabo-verdiano.

    Foi constituída língua de aprendizagem obrigatória no Uruguai, na Argentina e na Zâmbia. Possui estatuto oficial em organismos internacionais como a ONU, a União Europeia, o Mercosul, a União Africana, a Organização dos Estados Americanos, a União Latina, a Associação dos Comités Olímpicos de Língua Oficial Portuguesa.

    Os que se opõem ao Acordo Ortográfico alegam que outros idiomas, como o Inglês ou o Espanhol, não estabeleceram qualquer acordo entre os diversos países falantes. A esses convém lembrar que o Português é a única língua falada por mais de 100 000 000 de pessoas com duas ortografias oficiais enquanto o Inglês regista apenas diferenças ortográficas pontuais mas não ortografias oficiais divergentes o que torna desnecessário qualquer acordo. Foi para responder a essa divergência que se estabeleceu o Acordo em 1990 e que se encontra em processo de implementação.

    Todos os esforços tendentes a preservar a unidade do tesouro que constitui a Língua Portuguesa são necessários e bem-vindos. Ouçamos o que dela tem sido afirmado por personalidades falantes e não falantes: há cerca de 500 anos Miguel de Cervantes, o genial autor de D.Quichote, considerava o nosso idioma «doce e agradável»; Samuel Beckett, Prémio Nobel de Literatura em 1968, aprendeu Português «para poder compreender melhor Fernando Pessoa»; António Ferreira, o “Horácio Português”, escrevia no séc. XVI: «Floreça, fale, cante, ouça-se e viva/ A Portuguesa Língua e já onde for/ Senhora vá de si soberba e altiva/ Se té qui esteve baixa e sem louvor/ Culpa é dos que mal a exercitaram/ Esquecimento nosso e desamor.» ; Alberto Nepomuceno, compositor e maestro brasileiro (1864/1920) dizia: «Não tem pátria um povo que não canta em sua língua»; Hélio Melo da Academia Cearense da Língua Portuguesa, exclamava: «Amarás a tua língua como a tua pátria». Fernando Pessoa, através do seu heterónimo Bernardo Soares declarava sem ambiguidades: «A minha pátria é a Língua Portuguesa». Muitos outros testemunhos poderiam ser enunciados, mas o rol é extenso e o espaço limitado.

    Se é livre o pensamento e a sua expressão, uma constante obrigatória subjaz ao uso que dermos a este magnífico tesouro que nos foi legado: amá-lo e respeitá-lo por tudo quanto ele representa enquanto veículo de comunicação e pelo prazer que nos outorga nas manifestações artísticas a que pode prestar-se.

    Por: Nuno Afonso

     

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