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    Arquivo: Edição de 15-03-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    O sentido do sofrimento

    Maria aceitava as palavras animosas que lhe dirigiam a propósito da doença que, há tempos, a incomodava, fingindo desconhecer a sua gravidade. Sabedores da perspicácia que a distinguia, aos poucos, também os filhos tiveram a certeza de que ela guardava para si tão doloroso fardo e respeitavam-lhe a reserva. Jamais ouviram um queixume seu, um gesto de revolta ou inconformismo, nunca surpreenderam uma lágrima teimosa a escapar-se-lhe dos olhos, mas sabiam que, no seu íntimo, lavrava enorme sofrimento.

    Nascida e criada no campo, habituara-se à sabedoria empírica dos aldeões que pautavam as suas vidas com os sinais da natureza, calculando, pela direcção do vento, pelo voo rasante dos pássaros ou pelo vermelho-sangue das nuvens no poente, que tempo esperar para o amanhã; lendo, no comportamento inabitual dos animais domésticos, se havia precisão de recorrer ao alveitar por não bastarem as mezinhas recomendadas pelos mais antigos; respeitando o momento adequado a cada acto da vida. Ela própria tivera, desde menina, a responsabilidade de zelar por uma casa de lavoura e respectivos moradores e, uma vez casada, quando o marido teve que emigrar segunda vez para o Brasil, assumira, quase totalmente, os encargos resultantes da criação de sete filhos, uma escadinha elástica à medida do tempo que passava e as crianças careciam de mais atenções.

    À responsabilidade de gerir as terras e ajudar no seu cultivo vinha juntar-se a orientação dos que, concluída a instrução primária, requeriam o acesso a outro grau de conhecimentos e a inevitável deslocação para fora da aldeia com acrescido ónus financeiro. Houve doenças graves a que teve de acudir, noites insones de angústia e desamparo, despesas inesperadas a enfrentar. As colheitas eram, frequentemente, escassas e o dinheiro do Brasil tardava em chegar, apesar dos esforços do marido e do filho mais velho que, entretanto, fora ter com o pai e o ajudava nos negócios nem sempre bem sucedidos. Quantas vezes precisou de vencer dificuldades urgentes sem saber como, acreditando num milagre que, deste ou daquele modo, sempre acontecia, personificado em gente boa que não tinha qualquer dúvida quanto à sua honestidade e garantia de reembolso! O coração de Maria sangrava sempre que, humildemente, precisava de recorrer a alguém para reformar uma letra no banco ou adquirir algo que a família não podia dispensar. Também não se eximia a auxiliar quem a ela recorresse e as condições lho permitissem.

    Foram dezassete anos de luta e sacrifícios na ausência do marido e do filho mais velho, existências hipotecadas, em benefício dos filhos que desejavam projectar na vida. Um dia, a longa separação terminou marido e filho voltaram a casa, mas a alegria do reencontro foi breve, outras separações aconteciam, agora, alguns dos rapazes mais novos eram chamados para a Guerra Colonial: um regressava de Angola, seguia outro para a Guiné. De novo a saudade e a amargura das ausências, o temor do que pudesse acontecer. Por cada um que voltava alegrava-se o coração de Maria, sofrendo já pelo que viria em seguida.

    Ultrapassados os medos, esquecidas as distâncias, o casal entrou num curto período de tranquilidade, gozando, no lar tradicional, doces dias de bonança. Agora, os seus meninos ensaiavam o voo rumo à vida adulta, era urgente cada qual encontrar um emprego, preparar o respectivo ninho. Porém, como diz o povo, logo que se atinge um certo nível de bem-estar, eis que a dor reaparece em toda a sua crueza: Maria perdeu o marido num acidente de todo inesperado e o luto instalou-se na família.

    Alguns anos mais adiante a saúde de Maria começou a ser preocupação para todos. Os que viviam no Porto e em Lisboa pediam-lhe insistentemente que fosse com eles para efectuar exames mais rigorosos e, caso necessário, submeter-se a tratamentos adequados. No entanto, o hábito de pensar mais nos outros do que em si mesma, mormente em relação aos filhos, talvez houvesse motivado a escusa reiterada em aceder aos seus pedidos. Mas um ano, pelo Natal, todos entenderam que não havia lugar para demoras. O Virgílio e o Francisco “exigiram” que ela os acompanhasse no retorno à capital e não teve remédio senão aceitar.

    O diagnóstico não deixou margem para dúvidas: a paciente sofria de um tumor no estômago que tinha de ser operado com a maior urgência. Isto disse o médico aos filhos que a acompanharam, quando foram saber os resultados, acrescentando informes detalhados sobre o estado da doente bem como previsões quanto ao evoluir da enfermidade. Talvez devido à idade – andava pelos setenta anos, – a doença fosse mais benigna na sua evolução. Infelizmente, enganou-se.

    Não obstante o sigilo que eles, ciosamente, guardaram, terá sido nessa ocasião que Maria teve a certeza da sentença que lhe estava reservada. Voltou a Bragança e tentou seguir a rotina a que se habituara, ajudando na criação de alguns dos netos com quem habitava. Todavia, a doença fazia o seu caminho, inexorável, num padecimento cada vez mais doloroso. A breve trecho, recolhia-se ao leito, em definitivo, e tornou-se indispensável alimentá-la artificialmente. Foram muitos meses de progressiva agonia, acompanhada pela nora Mercês, inexcedível em carinho, atenção e cuidados higiénicos e pelas filhas e filhos com quem privava a cada dia. Os que viviam longe acompanhavam com preocupação o seu estado de saúde.

    Hoje que tanto se fala em fuga ao sofrimento, em “morrer com dignidade”, é-me difícil compreender o conceito que dessa forma se pretende exprimir. Para os que têm Fé, a dignidade reside na aceitação do bom e do mau que Deus reservou a cada ser humano. Numa abordagem simplista, perguntar-se-á que Deus é esse que permite destinos tão cruéis para alguns dos Seus filhos, onde está a Sua misericórdia, sobretudo quando se tem uma vida exemplar, de solidariedade com o próximo.

    A doutrina cristã apresenta-nos o exemplo do próprio Filho de Deus que veio ao mundo, padeceu e morreu para redenção dos pecados humanos, que o sofrimento não é castigo que Ele nos queira infligir e que a interpretação dos Seus desígnios não se encontra ao nosso alcance. Considerando a história de Maria, quantas vezes me surpreendo a pensar que talvez ela tenha oferecido as suas penas em prol não só dos filhos e outros familiares, mas também em benefício dos seus semelhantes esquecidos por aqueles que tinham obrigação de os amparar e recordar.

    Por: Nuno Afonso

     

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