Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 15-01-2009

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    A difícil opção

    Entrou no Seminário para ser Bispo. Isso mesmo: Bispo.

    Ainda miúdo, olhava para o céu com milhões de estrelas a cravejarem de luz o manto da noite, mas a sua atenção concentrava-se naquela que mais refulgia e ali se quedava até que a voz da mãe o chamava à realidade. Ignorava o nome dessa estrela e só anos mais tarde veio a saber que se chamava Sírio. Era a sua estrela. Não que fosse contemplativo, à parte esse pormenor comportava-se como um rapaz normal para a idade: corria e jogava, pregava as suas partidas, trocava “mimos” com os colegas.

    Na escola primária distinguiu-se entre todos pela apreensão rápida de tudo quanto a professora lhes ensinava e pelo raciocínio lógico evidenciado ao serem-lhe presentes dados a exigirem soluções prontas e adequadas. A professora dissera aos pais que o menino deveria continuar os estudos. Porque a situação económica da família não consentia as despesas para tal necessárias, a escolha óbvia era o Seminário que ministrava boa formação à maioria dos jovens oriundos das aldeias do interior sem ferir demasiado a economia dos pais.

    Assim, num domingo, após a Missa, os pais levaram o pequeno à sacristia para solicitarem os bons ofícios do pároco que divulgava com insistência o empenho da diocese em aumentar o número de educandos da sua principal instituição com vista à descoberta de novas vocações. Era, no entanto, imprescindível, um atestado da autoridade eclesiástica local, o pároco, acerca do bom comportamento religioso e moral do candidato e da respectiva família.

    – Então, meu rapaz, sempre queres ser padre? – inquiriu o sacerdote.

    –Não senhor. Eu quero é ser Bispo. – esclareceu o petiz sem hesitação ou mostra de acanhamento.

    O padre soltou uma boa risada, tomando por dito inocente o resultado de pensares que o João vinha acalentando desde que observara o Bispo da Diocese, na cerimónia do crisma, a caminhar majestosamente pela nave da Sé, de mitra na cabeça, na mão direita grosso anel de ouro com uma pedra preciosa engastada, empunhando o báculo de metal doirado trabalhado a primor. No fim da cerimónia, viu-o entrar num automóvel, luxuoso a seus olhos, e um motorista bem vestido acorreu, solícito, para lhe abrir a porta de trás, segurando-a até ele se ter instalado. Quem me autoriza a garantir que não havia uma ponta de ingenuidade no julgamento do menino?

    Ter-lhe-á parecido que vida de Bispo devia ser particularmente propícia a granjear fortuna, nada comparável com a do padre lá do sítio, coitado, que trazia sempre a mesma roupa, os mesmos sapatos ou botas – de Inverno precisava de botas para sujeitar à lama das ruas, que socos ficavam mal a um Ministro da Igreja e só o Padre Malta de Refoios os chegou a usar, segundo me contaram, para celebrar Missa – e andava numa charanga que ele mesmo conduzia. O Bispo mandava em centenas de padres e habitava uma casa grande a que davam o nome de Paço Episcopal. Assim lhe dissera o Albertino, um rapaz da sua aldeia que já andava no Seminário há quatro ou cinco anos. Pois era isso mesmo que ele queria. O que o Albertino não lhe explicara é que o Bispo não tinha mulher e filhos como os outros homens a não ser que faltasse à promessa que fizera a Deus. Veio a sabê-lo por intermédio de colegas sabidolas quando já frequentava o Seminário e tal informação arrefeceu bastante o entusiasmo inicial. Mais cedo que tarde, foi descobrindo outros dados que o levaram a concluir não ser essa a direcção indicada pela sua estrela.

    Expulsou a ideia – agora diz-se projecto ainda que faltem objectivos definidos e estratégias claras – do seu espírito, mas conservou os sonhos e, para começar, disse aos pais que não queria continuar no Seminário. Sabia que tinha de sujeitar-se a um exame de equiparação ao Liceu, uma vez que os programas do Seminário e do Ministério da Educação Nacional não tinham correspondência.

    À semelhança de tantos outros portugueses inconformados com as difíceis condições de vida no seu país, o casal rumou a França, mas os filhos continuaram a estudar. O João ocupava as férias grandes em trabalhos sazonais cuja remuneração, bem poupadinha, lhe permitiu a continuação dos estudos. Para a família, a vida tinha melhorado consideravelmente, mas eis que uma grave doença atingiu o pai dos rapazes, vindo a falecer pouco depois. A viúva teve que regressar às origens e ao amanho das leiras. Trabalhadora, habituada a uma alimentação frugal e a poucos luxos, foi-se desembaraçando com o auxílio dos filhos para manter uma vida honrada e decente.

    O João transportava sem detença ou abatimento, os sonhos que cedo acudiram à sua imaginação de criança. Agora mais crescido, revelava superior consistência nos seus planos de vida. As capacidades intelectuais que tinha revelado desde a infância permitiram-lhe subir, degrau a degrau, até às portas da Universidade. Ainda no Liceu, parecera-lhe que a Engenharia havia de ser o seu destino lhe tanto mais que à propensão para a Matemática e as Ciências em geral somava uma habilidade manual invejável. Ainda não se esquecera da sua estrela, aquela Sírio que tanto o atraía e lhe guiava os sonhos. Já não precisava de contemplar a vastidão do céu, tinha-a incrustada no cérebro. Alimentava o desejo de tornar-se famoso como autor de grandes obras: pontes, viadutos, túneis… A História guardava nomes de grandes engenheiros, inovadores, mas, para cada Eiffel ou Edgar Cardoso, havia centenas de milhar de outros que não passavam da mediania. Não tinha medo da competição e confiava nos seus dotes. Não sendo falador, reservou para si – talvez confiasse à mãe e ao irmão, é de todo natural – os motivos de mais esta mudança de rumo.

    No momento de tomar a definitiva decisão, optou pela Medicina, porque não conhecia médico pobre e sentia atracção pelo exercício do nobre mister. Sírio, a sua estrela, que marcava para os egípcios o início das cheias no delta do Nilo e com elas a prosperidade que as boas colheitas propiciavam, significou para o João o caminho da independência e a concretização dos sonhos da infância.

    Por: Nuno Afonso

     

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].