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    Arquivo: Edição de 15-04-2007

    SECÇÃO: Crónicas


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    Ser professor é uma profissão?

    Manhã cedinho, minutos antes de começarem as aulas, vão chegando os mais temporãos. Mantenho-me no carro a ouvir as notícias e, quando entro na sala dos professores, já ali encontro o Mascarenhas e a esposa Assunção, a Ana Cabral e o Valério. A Helena e a Maria da Luz vêm de seguida. Cada um toma assento no lugar da sua preferência. De futuro, hei-de recordá-los ali, na sua postura habitual o sorriso e a expressão fisionómica de cada um, já que as palavras não escapam à sua efemeridade, são pulverizadas pelo tempo.

    Mal chega, a Helena assume a direcção da conversa. Relata histórias do seu quotidiano com a isenção de quem vê algo acontecer, em linguagem simples mas escorreita de excelente contadora de histórias, – não fora ela professora da língua pátria! - de que nunca exclui o bom humor, traço que a distingue, pouco se importando em preservar a própria imagem, sempre isenta de retoques.

    Penso que não é casual este procedimento. Antes de mais, porque é preciso contrariar a tendência mórbida dos professores em coçar as feridas que o exercício da função docente lhes vai abrindo no espírito e sempre renovando. Com efeito, vivemos a escola de tal maneira que não temos outro assunto além dos alunos, das dificuldades que encontramos na turma X ou Y, o desinteresse de uns e o distraimento de outros, a malcriação, a insolência, a indisciplina que tendem a generalizar-se, a defraudação de que temos sido vítimas da parte das autoridades face à dita opinião pública, em discurso de lógica aparente, e as situações de injustiça que dela derivam. Era comum chamarmos à sala dos professores Muro das Lamentações, agora temos ainda mais razões para o fazer. Outro motivo para a atitude da Helena é, provavelmente, a percepção de que, desvelando-se perante os outros e assumindo sem peias a própria vulnerabilidade, renega qualquer assomo de hipocrisia em que todos tendemos a incorrer, quando referimos factos em que participámos.

    Nesse dia, o ambiente em nada era distinto de outras ocasiões. Ao cumprimento de cada recém-chegado seguia-se a resposta do costume, quase maquinal. Havia quem entabulasse diálogos de ocasião ou quem desse continuidade a conversas anteriormente encetadas. Ouviam-se, pois, fragmentos de mensagens, de que não éramos destinatários, pairando no ar e que, por breves instantes, a nossa memória registava, não obstante a atenção que púnhamos no episódio que a Helena ia desfiando acerca do cunhado, retido numa cama de hospital por obra de um estranho e agressivo vírus, das reacções do doente às intervenções de familiares e profissionais de saúde que dele cuidavam ou à própria situação em que se encontrava.

    Ouviu-se a palavra “padre” que, por motivos óbvios relacionados com o subconsciente colectivo, desperta atenções. A muitos dos presentes não pareceu ter causado impressão, talvez porque estivesse a par do acontecido. Alguém, no entanto, exprimiu a sua curiosidade:

    - Falaram no padre… Que padre?

    - Aquele colega que esteve cá nos dois últimos anos. – esclareceu quem, inicialmente, tinha pronunciado a palavra.

    - O Padre Adérito, de História?

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    - Esse mesmo. Estava a trabalhar em Campo ou em Sobrado, não sei bem.

    - Porquê estava?

    - Porque, infelizmente, já não está. Faleceu na semana passada, mas ninguém soube. Só ontem à tarde é que o nosso Conselho Executivo transmitiu a notícia.

    - Devo ter saído antes. Imagine, logo ele que tão inconformado se mostrava face à nova situação que nos foi criada! De qualquer modo, pelos seus cálculos, aposentar-se-ia no final do corrente ano lectivo…Ficaria, então disponível, exclusivamente, para os seus compromissos pastorais e para as suas leituras.

    A morte de alguém que nos é próximo representa sempre um choque, uma enorme tristeza e traz consigo um turbilhão de reflexões que nada já significam para quem partiu, mas perturbam imenso quem por cá vai ficando. Ninguém sabia a causa da morte e surpreendeu porque o colega aparentava boa saúde. Mais uma vida se extinguiu, restou um nome, talvez nem isso, apenas o título religioso, “o padre”, e a fugaz lembrança de alguém que contracenou connosco na tragicomédia real, o modo de falar alto e rápido, o riso nervoso, excessivo, o feitio contestatário, a disponibilidade para ajudar. Irónica a vida! Quando estava tão próximo de alijar o fardo profissional que tanto lhe pesava, eis que Deus o chamou à Sua presença. Bem diz o povo que é normal acontecer tal situação sempre que alguém levou a bom termo rudes tarefas ao longo da sua existência e, chegado o momento de desfrutar do merecido descanso, esse conforto ser-lhe negado. Lamentável também o atraso na comunicação do infausto acontecimento à escola onde o malogrado colega trabalhou nos últimos anos, a reforçar a opinião de muitos, segundo a qual não existe verdadeira amizade entre os agentes do ensino, mas tão só um elo ténue que não subsiste a um afastamento mais prolongado. É pena!

    Por: Nuno Afonso

     

     

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