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    Arquivo: Edição de 30-07-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    Viúvas de homens vivos

    Sabem o que significa estar ali e ter o coração a milhares de quilómetros com um oceano de problemas pelo meio? Quem viveu neste quadro compreende o que pretendo dizer; outros hão-de pensar que não passa de figura retórica. Aliás, o ser humano tem necessidade de experimentar para entender. Quem pode censurar S. Tomé por não ter acreditado na ressurreição de Jesus senão depois de tê--lo visto e de ter posto a mão nas suas feridas?

    O português nasceu com a marca da inquietude. Este país de magros recursos cedo compreendeu que não cabia nas fronteiras que a geografia e a política lhe traçaram. Por isto, assistiu com resignação à sangria de muitos dos seus filhos que, pelos séculos fora, demandaram outros horizontes à procura de meios que por cá lhe foram regateados. Aonde quer que tenham ido, dignificaram o nome da Pátria, ajudaram a desenvolver outras sociedades, notabilizaram-se, lançaram raízes nos países de acolhimento.

    Quantos foram em busca de melhor sorte, deixaram a cabeceira da mesa familiar vazia, a cuidar que a ausência seria curta, “em dois ou três anos estarei de volta” disseram, julgando, como outrora, que miríficos tesouros os aguardavam em terras úberes e generosas. Todavia, esses dois ou três anos multiplicaram-se por muitos outros, os tesouros não passavam de sonhos maravilhosos, mas eles não deixaram de cavar fundo para os alcançar, com tanta persistência quanto as forças lho permitiam.

    Na aldeia ou na vila ficaram as mulheres e os filhos a exigir sustento e educação. Mulheres que, de repente, se viram sozinhas com a responsabilidade imediata da prole e que não viraram a cara à luta, mais bravas do que os lobos que povoavam as matas da redondeza, mais teimosas do que as pedras de que tentavam extrair o pão de todos os dias.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Do outro lado nem sempre as coisas corriam bem. Havia os encargos contraídos para a viagem, dinheiro que pediram emprestado e que urgia devolver; alguns tinham contraído dívidas maiores em iniciativas agrícolas mal sucedidas em que governo e natureza conjugaram esforços contra eles e constituíam a razão maior da partida. Acrescia, agora, a necessidade de amealhar capital para iniciarem um negócio rendoso. Ninguém queria arriscar-se a pedir todo o dinheiro emprestado, porque os juros corriam altíssimos, muito além dos lucros que da exploração comercial pudessem advir. O resultado era noites de insónia a angústia apertando o peito, o orgulho a ferir a alma por não alcançarem os objectivos, a falta de perspectivas animadoras. Pensar que não podiam dar maior contribuição para a despesa familiar, engrossada à medida que os filhos deixavam o lar para prosseguirem os estudos, encarecia o mal-estar, trazia a desesperança. Vinha um dia em que a situação se afigurava mais prazenteira, constituía--se uma sociedade comercial, contabilizavam-se as primeiras mais-valias, no entanto os empréstimos, ainda uma vez, consumiam “a parte de leão”. Podia ser o princípio de alguma coisa capaz de resolver os problemas da família, podia também não passar de mais uma ilusão. Sempre as circunstâncias...

    Vestiam-se de negro no dia em que os homens se ausentavam, faziam calar grafonolas e rádios, elas próprias continham no peito todo o assomo de alegria: os bons resultados dos filhos nas actividades escolares, as cartas dos maridos, a boa saúde que diariamente Deus lhes concedia. De resto, havia sempre algo que as martirizava: as eternas dificuldades económicas; prejuízos causados por geadas tardias ou por trovoadas quando as searas já amadureciam ou o cereal ceifado esperava nos chãos que o transportassem para as eiras; a enxurrada levando tudo à sua frente e provocando a erosão dos solos... Quando se aproximava a data de satisfazerem um compromisso financeiro e se encontravam desvalidas, era como se um garrote as asfixiasse e apenas o amor dos filhos e do marido ausente as estimulassem a lutar contra ele.

    – Em muitas ocasiões, a senhora Marquinhas veio ter comigo, de lágrimas nos olhos, a pedir um empréstimo até que o Grémio lhe pagasse o cereal que lá tinha depositado no fim do Verão. Havia que reformar uma letra no banco e, de momento, não tinha dinheiro. – confidenciava-me o tio Zé Caetano a elogiar-lhe a coragem e a determinação para enfrentar as dificuldades da vida. – Mas valeu a pena, porque todos os filhos estudaram e estão aí preparados para arranjar bons empregos e ter um futuro melhor.

    Essas mulheres foram as grandes heroínas numa época difícil da nossa vida colectiva. Passaram, contudo, ao lado de qualquer reconhecimento social, ainda que tivessem contribuído de maneira incomparável para que o país conte hoje com muitos milhares de homens e de mulheres que, não fora o seu esforço, teriam ficado a empobrecer tristemente pelo interior de Portugal ou teriam seguido o rumo dos pais, estabelecendo-se num país estrangeiro e ali oferecendo o seu trabalho, a sua honradez e a sua criatividade.

    – Não sei como é que vocês portugueses conseguem deixar a família e ficar anos longe dela. Eu não seria capaz. – assim afirmavam convictamente muitos brasileiros, enquanto tomavam o seu aperitivo para o jantar, ao balcão de um café de patrícios, reconfortados com a ideia de que a família os esperaria naquele e em todos os dias para o resto das suas vidas.

    Nada, porém, é eterno no mundo em que vivemos. Atente-se na quantidade de brasileiros que fazem actualmente caminho idêntico ao dos portugueses de há meio século. Como dizia Ortega Y Gasset: “ O homem é ele e a sua circunstância”.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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