Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 29-02-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 15-06-2006

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    O cábula, figura romântica

    Noutros tempos diziam-se cábulas aqueles que consumiam o seu tempo a passear os livros e a gastar o dinheiro que os pais ganhavam com maior ou menor sacrifício. Como justificação para a preguiça e a vida airada, especializavam-se em (im)piedosas mentiras que mantinham os progenitores na santa ignorância, em técnicas engenhosas para iludirem os mestres e fugirem a chumbos e a raposas. Tinham mais aptidão para essas aprendizagens do que para as preguiçosas lições nas salas de aula. E vá de copiarem, em provas a que tinham de sujeitar-se, optando por uma entre o extenso rol de novas e antigas formas que, por uma espécie de metonímia, ganharam também o nome de “cábulas”. Cada qual recorria àquela que melhor se ajustava à sua idiossincrasia ou às circunstâncias do momento. Manobras perigosas que, frequentemente, davam azo a punições severas, desde a anulação do ponto até ao convite nada cordial ao gabinete do reitor. Por isso, achei graça a um estudo publicado numa das últimas semanas sobre os hábitos do copianço pelos alunos actuais, como se tal prática fosse de invenção recente tal a “pólvora sem fumo”. “Só contaram p’ra vocês!” – diria o Jô Soares. Assim como outra das conclusões: os rapazes são mais propensos a tais artes do que as raparigas!!!

    O cábula era, em geral, tão inteligente como qualquer outro, às vezes mais, e sobretudo experimentado na arte do “desenrasca”. Não tinha noção do ridículo ou mandava-a às urtigas, arriscava, ainda que as probabilidades de êxito fossem diminutas, (até para copiar é preciso saber!) supria as deficiências de trabalho com uma inventiva delirante. Tinha o quanto baste de D. Quixote, dose respeitável de malandragem e uns pós de conhecimento mais esburacado que queijo suíço. Daí o romantismo que aureolava essa figura.

    Havia disciplinas em que o recurso à cópia era mais habitual e necessário como a Língua Portuguesa e a História ou as Ciências Naturais mas invadia todo o currículo escolar, semelhante a um vírus adaptável às características do meio. Quem não se lembra da personagem a quem era pedida a enunciação do Princípio de Arquimedes: “ Todo o corpo mergulhado num líquido...”. Ah, essa parte era fácil, todos sabiam, mas o resto... E não conseguia captar, nas dobras da memória qualquer sonoridade, sequer um eco ténue da famosa proposição. Resolveu apostar no óbvio e acrescentou: “...molha-se.” Ponto final.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Talvez o leitor conheça o caso do aluno que traduzia um trecho de Virgílio e deparou com dois pronomes seguidos, dois monstros como Cila e Caribdes: quibus illis e sofreu um trágico afundamento, mas legou à nossa pátria linguística o famoso busílis da questão, que é assim a modos que o sítio “onde a porca torce o rabo”. E já que em latim nos entendemos, ou não, contava-se a história do jovem que, ao iniciar o De Bello Gallico de César, cuja frase inicial era Galia divisa est in partes tres a traduzia por César foi para a Gália de bicicleta. Provavelmente não passaria de anedota, mas ilustra a ligeiríssima ideia que o aluno possuía da matéria em causa.

    Um professor brasileiro de História, que guardava, como se fora um tesouro, as respostas e dissertações mais curiosas dos alunos que passaram pelas suas aulas, tinha particular afeição a um relato sobre o Achamento do Brasil, feito por um dos seus pupilos com fumaças literárias, talvez inspirado na Carta de Pero Vaz de Caminha, mas sem nenhum rigor histórico, antes deixando-se vogar no mar da fantasia: “Pardos, nus, sem cousa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas... Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara... ali andavam entre eles três ou quatro moças bem novinhas e gentis com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não se envergonhavam... assim eram os homens e as mulheres que à presença do capitão foram trazidas. Depois de lhes oferecer barretes e carapuças assim como roupa de linho, quis saber quem era o seu chefe. Adiantou-se um homem adornado com um cocar de penas garridas e variadas que se postou diante dele de braços cruzados, olhar altivo e inquiriu:

    – Quem sois e o que desejais?

    – Sou um comandante português e venho descobrir-vos.

    A estas palavras o cacique tupi levantou os braços e exclamou com entusiasmo:

    – Graças a Deus, estamos descobertos!”.

    Ao longo de muitas semanas fizemos a leitura orientada de “Ulisses”, obra de Maria Alberta Menéres, com base na Odisseia de Homero, como parte do programa de Língua Portuguesa do 6º ano. Em cada sessão líamos algumas páginas e, sobre a leitura feita, os alunos eram solicitados a preencher uma ficha de interpretação do texto e análise morfossintáctica. No encerramento, fizemos um teste com base num excerto do livro. O leitor, provavelmente, saberá do papel que o herói desempenhou na Guerra de Tróia e da longa viagem de regresso a Ítaca, de que era rei, onde a esposa Penélope e o filho Telémaco o esperaram durante dezoito anos. Pedi-lhes que escrevessem uma composição, dando conta das suas impressões acerca da obra, assim como do episódio que lhes agradara mais e porquê. O que segue é uma dessas composições:

    “Era uma vez muitos marinheiros um deles chamava-se Ulisses e então o Ulisses como era muito corajoso decidiu ir dar uma volta de barco.

    Nesse dia que ele disse que ia andar de barco estava uma grande trovoada e um grande chuveiro.

    Os seus amigos marinheiros disseram-lhe não podemos ir assim para o mar.

    Mas como o Ulisses era muito corajoso decidiu ir e os seus amigos marinheiros foram com ele para não o deixarem ir sozinho. O Ulisses meteu-se no barco com os seus amigos marinheiros para dar uma grande volta.

    Nas ondas é que foi o pior entrou água para o barco até baterem num rochedo os seus amigos disseram-lhe vamos para casa. Ulisses foi para casa. Demorou muito tempo mas chegaram a casa e acabou tudo bem.”

    O cábula de outras eras já não existe. Hoje reina o desinteresse, a preguiça, a insensatez de uma juventude que possui da vida uma visão desfocada. Ou seremos nós que teimamos em impingir-lhe conhecimentos que considera inúteis?

    Por: Nuno Afonso

     

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].