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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-03-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    O espelho ou a caricatura?

    Ao alarido dos muçulmanos a propósito das caricaturas de Maomé respondeu o mundo ocidental com justificações e comentários de jornalistas, escritores, comentadores e personalidades outras que, de alguma forma, representam a maneira de pensar e de sentir dos que se identificam com os valores que enformam a nossa civilização. Já se manifestaram milhões de pessoas de um lado e do outro em arruadas e em escritos, defendendo, de um lado, a sacralidade dos símbolos e das entidades religiosas e do outro a sacrossanta liberdade de expressão uma entre as que fundamentam os regimes democráticos.

    Nos países que professam o Islamismo as manifestações assumiram particular virulência; no ocidente o assunto foi tratado, em geral, de maneira comedida. Houve, é certo, atitudes histriónicas como a daquele ministro italiano que exibiu, sarcástico e desafiador, caricaturas do Profeta estampadas na sua t-shirt frente às câmaras de televisão; a retoma da linguagem jocosa em jornais de diversos países europeus; contradições como sucedeu na Dinamarca onde os directores do jornal, que inicialmente publicou as famosas caricaturas, pediram desculpa aos muçulmanos pelo malfeito enquanto as autoridades do país, não obstante os ataques às suas embaixadas, com os prejuízos inerentes, e aos próprios cidadãos dinamarqueses, mantiveram postura consentânea com a tradicional liberdade de imprensa, património do mundo ocidental há perto de três séculos; tomadas de posição ao nível de governos como a do nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros tão mal recebida e tão levianamente contestada por sectores políticos mais preocupados em fazer chicana do que em esclarecer fosse o que fosse.

    Não era minha intenção participar em tal chinfrineira, mas pareceu-me que, se o Criador nos deu dois olhos, dois ouvidos e apenas uma língua, como dizia o mestre dos oradores e figura cimeira da nossa literatura Padre António Vieira, fê-lo para que obtivéssemos um amplo conhecimento da realidade antes de soltarmos a língua ou o que as suas vezes fizer. No caso vertente, as opiniões que li e ouvi enfermavam de visão parcial. Alguns entenderam que se tratava de uma questão religiosa, “tomando a nuvem por Juno”, tal como muitos fizeram a propósito do Ulster que durante décadas ensanguentou aquela parte da Irlanda e levou a morte e a destruição a outros pontos das Ilhas Britânicas. Num caso como no outro, a religião foi o pretexto, quiçá o combustível que melhor serviu para atearem um incêndio que ocultasse interesses de diversa natureza..

    Aquela parte do mundo que abrange todo o norte do continente africano, alastra pelo médio Oriente e atinge extensões da Ásia, ainda que pertencentes a várias etnias, professam, na sua esmagadora maioria, a religião islamita. Sabemos que a religião, além da crença, tem uma forte componente valorativa nos aspectos culturais, sociais e outros que os seus fiéis compartilham. Tal não significa que persista entre esses povos o espírito de conquista por razões de Fé que durante séculos mantiveram. As lutas por domínio territorial fizeram a sua época e, mesmo então, ela não era fundamento exclusivo, muito pelo contrário. Sabemos que Omíadas, Almorávidas, Abácidas,Almuridas, Almóadas e tutti quanti de tribos ou seitas que seguiam o Corão envolveram-se com frequência em lutas fratricidas, muitas vezes aliando-se aos cristãos para levarem de vencida os seus opositores, conquistando-lhes as terras e outros bens.

    AS VICISSITUDES

    SOFRIDAS

    AO LONGO

    DO TEMPO

    Parece óbvio que os muçulmanos são, entre os que professam uma das grandes religiões monoteístas, os mais fervorosos e obedientes aos respectivos rituais. Esse fanatismo, em determinadas condições, pode tornar-se cego e ser manobrado por grupos organizados e com objectivos políticos. Não esqueçamos que as religiões, como tudo neste mundo, nascem, desenvolvem-se, sofrem vicissitudes diversas sob influência de determinadas circunstâncias ao longo do tempo. Ressalvando o carácter intrínseco de cada uma, convém referir que o Islamismo surgiu no século VII da nossa era, e tem, por conseguinte, um tempo de existência bem mais reduzido do que o Cristianismo, atravessa presentemente a sua Idade Média. Lembremo-nos de que a religião maioritária do mundo ocidental deu azo a comportamentos pouco edificantes durante a época medieval e foi em nome de Jesus, o grande arauto do Amor, que se cometeram inomináveis atrocidades, injustificadas violências, crimes sem catalogação conhecida, que nada tiveram a ver com a apregoada expansão da verdadeira crença e muito menos com o seu principal Mandamento.

    HUMILHAÇÕES

    E ABUSOS

    DE TODA

    A ESPÉCIE

    Herdeiros de uma extraordinária cultura que muito contribuiu para o progresso humano, os árabes vêem-se, neste início de milénio, afastados dos benefícios dele resultantes, sujeitos a humilhações e abusos de toda a espécie que o Ocidente, maioritariamente cristão, lhes tem imposto, quer directamente, quer por interpostos títeres com pés de barro. Apegaram-se, esperançosos, a figuras como a de Nasser no Egipto, de Hafez al Assad na Síria, de Kadhafi na Líbia, de Ben Bella na Argélia, de Yasser Arafat líder dos palestinianos e de outros de menor expressão como o sanguinário Sadam Hussein; foram subjugados por déspotas como os reis da Arábia Saudita, de Marrocos e por governantes corruptos em vários países do seu mundo bem como pelos clérigos nas mãos dos quais depositaram confiadamente os seus destinos. A maioria da população desses países vive miseravelmente, enquanto alguns detêm fortunas colossais, resultantes do petróleo, que investem em países ocidentais. É natural que tais situações gerem grande mal-estar que certas organizações aproveitam para transformar em ódio contra “os cruzados”, generalização injusta como todas as generalizações.

    Imaginemos que éramos nós as vítimas de tudo isto. Como reagiríamos se víssemos no Crescente a fonte de todos os nossos males ? É fácil defender as liberdades, entre elas a de expressão, quando temos assegurado o essencial para uma vida digna. Entre nós a crítica e a opinião, sob qualquer forma, vão sendo aceites ou toleradas, mas lembremo-nos de que, não há muito tempo, houve forte reacção a filmes de Godard, de Scorcese e outros; de espectáculos em que as figuras principais do Cristianismo são tratadas de forma “blasfema”; de livros em que o alvo mais apetecido tem sido a religião que ainda dizemos professar maioritariamente.

    Face a tudo isto, creio que será recomendável uma nova maneira de encarar o mundo que professa a religião muçulmana, em particular o mundo árabe, preferindo o diálogo à afronta, o humanismo ao interesse desenfreado, a paz e o amor ao ódio, o ecumenismo ao fanatismo. Não deixemos que a nossa liberdade ofenda a liberdade do nosso irmão.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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