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    Arquivo: Edição de 15-03-2006

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    Helga

    De saia rodada, pequena e viva, sempre em movimento como se fora uma pionça que entre os dedos máximo e polegar ganha impulso e rodopia, rodopia, rodopia, entontecida, a Helga distinguia-se de todas as meninas da turma.

    Nada lhe fazia perder a boa disposição, nem sequer as gracinhas dos colegas que estropiavam o seu nome só para a irritar:

    – Sai daí, Melga. Ó Melga, tens uma caneta vermelha ? Olha, Melga, podias comprar-me a senha de almoço que eu vou estar ocupado no próximo intervalo. És bem gira, Melga!

    Não dava importância à maneira como a chamavam e ficava contente de poder ajudar mesmo quando os pedidos eram pouco delicados. O sorriso parecia fixo no seu rosto como num retrato e aqueles olhos verdes, em contraste com a tez morena, davam-lhe um encanto especial que desarmava os mais impertinentes. Em breve tornou-se o ai-jesus da turma e, se insistiam em chamar-lhe Melga, não o faziam por mal, era apenas o pretexto para meterem conversa. Havia rapazes que tinham um fraquinho por ela, sentimento que não alimentava, fazia de conta que não entendia.

    Quando era chamada à “pedra”, só conseguia escrever duas ou três linhas, porque para mais não dava a sua altura. O professor de Português não tinha problemas: puxava de uma cadeira, punha-lha junto ao quadro para ela trepar acima e, quando a pequena já não podia esticar mais o braço, pedia--lhe que descesse, punha a cadeira uns passos adiante e ela imediatamente voltava a subir para continuar a escrita, tantas vezes quantas fossem necessárias até chegar ao extremo do quadro. A estratégia era a mesma nas linhas seguintes. Todos se riam vendo-a executar aquelas manobras de sobe-e-desce e ela própria se divertia com o jogo.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    A Helga andava muito longe de ser uma aluna brilhante. Com esforço conseguia alcançar a positiva, porque estava sempre de braço no ar para responder às perguntas dos professores, fazia os trabalhos de casa como se rezasse uma oração, era muito organizada e responsável. Nos testes é que nem sempre as coisas corriam tão bem: o seu objectivo era o Satisfaz, ainda que “a rasar a trave” mas, às vezes, não conseguia. No entanto, ela aceitava as suas limitações e considerava já uma vitória o cumprimento do dever. Prometia a si mesma que, na próxima, havia de ser melhor.

    Passavam dias, semanas, meses, e a vida da Helga parecia sempre igual, bem como a sua alegria. Mas todos sabemos que nada é imutável, nem o movimento dos astros, nem a vida das pessoas, nem tão pouco as atitudes e os sentimentos de cada um. E a Helga começou a mudar: um dia tinha dor de cabeça, no dia seguinte era a barriga que lhe doía, o sorriso desaparecera do seu rosto como o sol desaparece atrás das nuvens quando a trovoada está prestes a rebentar. Professores e funcionários andavam preocupados, porque a miúda deixara de cumprir as suas obrigações, nas aulas o seu pensamento fugia para muito longe e, no recreio, ninguém a via a brincar como dantes. A Júlia, sua melhor amiga, não a largava um só instante e as outras colegas revezavam-se a fazer-lhe companhia e a tentar distraí-la.

    Nas povoações pequenas quase toda a gente se conhece e as notícias espalham-se com enorme rapidez, tantas vezes sem que saibamos como. A directora de turma era dali e soube que o pai da Helga metera baixa na empresa em que trabalhava porque tinha uma doença grave e do facto deu conhecimento aos colegas. Volta não volta lá ia o senhor a caminho do hospital, certamente para consultas e exames, sempre na companhia da esposa. A certa altura ficou mesmo internado. Como não podia deixar de ser, toda a família entrou em crise e nem a coragem do pai e o esforço da mãe para disfarçar logravam esconder dos filhos a terrível situação. O ano aproximava-se do fim e a doença do senhor progredia, inexorável.

    – A Helga foi sempre muito apegada ao pai – explicou a directora de turma aos outros docentes na reunião final –, ela sofreu um grande trauma, vai ser preciso tempo e muita paciência para que supere as marcas que este acontecimento deixou na sua alma.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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