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    Arquivo: Edição de 28-02-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    Tempo de valentes (2)

    Nas asas da memória voa o tio Manuel Barrocas indiferente ao futuro que está quase a virar-lhe as costas. A recordação das ingénuas proezas de outrora alimenta os sonhos que ainda conserva. Na sua infância e juventude a valentia era título de nobreza e quem a detinha era merecedor de admiração e respeito. Por toda a região constava notícia dos seus feitos, que permaneciam na memória das gentes, mas duas ou três gerações bastavam para que de todo se apagassem.

    Encontrei-o no lugar de sempre. O seu olhar fixava-se à distância num ponto qualquer entre a indiferença e o vazio. Mundo vasto aquele em que se move, lembranças esbatidas e nimbadas de fantasia como as velhas fotografias que a filha tem encaixilhadas e pendentes das paredes da sala. Ele ainda ali está e não pensa no que pode vir a suceder, mas tudo parece já disposto para o dia seguinte.

    – Deus lhe dê bons dias, tio Barrocas. Levantou-se cedo!

    – É o costume, sabe? Habituei-me a deitar-me cedo e a levantar-me "ao ser de dia", mas agora fico mais um nadinha na cama só para não acordar os mais novos. Logo que eles se põem a pé, também eu deixo os cobertores, vou matar o bicho e venho apanhar sol. Se o tempo estiver mau, sento-me no escano ao pé do lume. Gostava mais de andar por lá, mas as pernas já não ajudam. Vou pensando na vida, olhe, "c'm'assim"(1)...

    – Há p'ra aí muito boa gente que tem pernas mas não tem cabeça, podia aprender bastantes coisas consigo – digo-lhe com sinceridade, porque o conheço de há muito –, gostei muito da história que me contou ontem e espero ouvir outras tão interessantes como essa.

    RUI LAIGINHA
    RUI LAIGINHA
    – Eu podia estar muitas horas aqui a falar que não faltava assunto. Já ouviu com certeza a história do seu tio João e da aposta que fez com a rapaziada do tempo. Pois eu ainda me lembro muito bem, teria os meus sete ou oito anos mas como poderia esquecer tal coisa? Era preciso ver, aquilo assim contado ninguém acredita. O seu avô encomendara carro novo a um carpinteiro de Martim e, no dia em que chegou, foi motivo de admiração porque era uma bela obra, não havia dúvida. Juntou-se muita gente a apreciar e não sei quem deu a ideia de o puxarem à mão por "ao Lombo" acima. O seu tio João lançou o desafio: ele levaria o carro sozinho até lá ao alto mais ou menos onde agora está a capelinha a Nossa Senhora de Fátima. O senhor, que já por ali passou muitas vezes e até o vê de sua casa, sabe que o caminho empina como lombo de potro bravo. Ninguém acreditou que fosse capaz nem era para acreditar: um carro de madeira nova e rodas ferradas tinha que ser mesmo muito pesado. Mas o seu tio era um homenzarrão, alto e forte, na flor da mocidade, e todos sabiam que tinha muita força. Ainda assim estavam convencidos de que era tarefa impossível para qualquer ser humano.

    – Mas fizeram alguma aposta ?

    – Disso não me lembro. Uns dizem que sim, outros que o seu tio fez aquilo só para mostrar valentia. Nesse tempo quem tinha dinheiro para apostar? As brincadeiras da rapaziada resolviam-se com uns copos. Podia ter sido isso: se não conseguisse, pagava um cântaro(2), talvez um almude de vinho; caso contrário, seriam os outros a responsabilizar-se pela dívida. E todo o povo tinha direito a "molhar o bico".

    – Imagino que todos pensavam serem "favas contadas" e que, além do espectáculo, ainda bebiam à conta dele.

    – Tenho a certeza, mas parece-me que não havia quem não gostasse de ver a façanha. Quando deitou a mão à cruzeta e começou a arrastar o carro, nesses momentos em que o senhor João falava com os seus botões, o ritmo lento iludiu muita gente. Depois foi acelerando um pouco mais. No ponto em que o caminho inclina mais, quase parou, deu a impressão de que ia sancar(3) mas aguentou-se. Devagarinho o carro subia, subia sempre, alguns já tinham as unhas roídas até ao sabugo quando o vimos chegar ao ponto combinado. Cá em baixo foi uma festa, bateram palmas, gritaram e logo desataram a correr caminho acima em grande alarido. O senhor João tinha calçado o carro e deitara-se sobre a aixeda, ofegante e banhado em suor. Logo que se sentiu em condições levantou-se e seguiu acompanhado pela multidão rumo à taberna para repor as energias despendidas. Esse foi o seu dia de glória numa vida que nem sempre lhe correu bem, coitado.

    Fez uma pausa e referiu a constante exibição de força dos rapazes batendo rijamente os malhos na eira e fazendo empinar os pírtigos(4) com donaire; os jogos de destreza e músculo, provavelmente de origem céltica, em que se incluíam o jogo dos paus, o lançamento do ferro, da relha ou da pedra; as zaragatas com a rapaziada de outras aldeias, em geral nas romarias, para se fazerem lembrar pelas raparigas do lugar onde se realizavam. Eu seguia, encantado as histórias e, mais ainda, com o entusiasmo que o tio Manuel Barrocas punha no relato.

    1 C'm'assim – forma abreviada de "como assim", com um sentido de aceitação embora com alguma relutância.

    2 Cântaro – recipiente com a capacidade de doze litros e meio de líquido, metade de um almude; o conteúdo desse recipiente.

    3 Sancar – não conseguir atingir a raia por falta de força, termo usado no jogo dos paus.

    4 Pírtigos – a parte do malho ou do mangual que desce sobre as espigas para fazer saltar o grão do cereal.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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