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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 15-01-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    Zé Moleiro

    De muitas léguas em redor avista-se o cerro imponente encimado por dois colossos rochosos, lado a lado como irmãos gémeos. De tão peculiar aspecto derivou o nome da aldeia que se abriga numa das faldas da montanha: Penhas Juntas. O lado oposto da pirâmide escondia, no bojo, rico veio de gordas raízes urzeiras, chamadas torgas, matéria prima ímpar no fabrico de carvão lenhoso. Situada a quinze quilómetros de Vinhais, sede concelhia, quem a demande encontra na sua rota outras povoações, regra aplicável a quase toda a terra nordestina em que os aglomerados populacionais não distam uns dos outros, em média, mais de uma légua.

    Um desses povoados é o Brito, de tal modo escondido num chafurgo(1) à margem do rio Cidões que o transeunte menos avisado passaria adiante sem a menor suspeita de que ali viviam para mais de duzentas almas. Deixando para trás a vila e, volvidos cerca de dez quilómetros, meio escondido por um muro de separação vicinal coberto de silvas e teimosas plantas silvestres, aparta-se um caminho rústico que vai ganhando inclinação descendente enquanto descreve uma curva em ferradura que não chega a completar-se, porque a aldeia vem ao encontro do forasteiro como em jogo de cabra-cega.

    Era daí que, todos os dias soltos(2), partia o Zé Moleiro em direcção ao cerro de Penhas Juntas, montado no burro, que transportava também o enxadão, o ferro, a pá e demais utensílios necessários ao trabalho que se impusera para ganhar a vida. Milagre seria encontrar alguém nesse percurso, porque saía de casa ainda a aurora o não era e chegava ao destino antes dos primeiros alvores matinais, mastigando, em andamento, uma côdea de centeio bem regada com zurrapa espremida de umas quantas parreiras que acarinhava em torno do casebre. Do jumento não esperava outra coisa senão a fidelidade costumeira: guiava-o pelo meio das trevas e, no silêncio que os envolvia, escutava-lhe os queixumes de homem castigado pela sorte. Cedo enviuvara e, do breve tempo de bonança, restara-lhe a filha Adelaide, único consolo numa existência de duro trabalho e penosa solidão. Era ela que o cuidava, lhe fazia o caldo, lavava e remendava os trapos que mal o protegiam dos rigores do tempo e, à noite, o ia buscar a taberna incerta, onde este, como tantos Zés deste munido, buscava remédio para as suas tristezas e desvarios.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    No cerro não havia ouro, prata ou diamantes que atraíssem garimpeiros ávidos de fortuna. Não era esse também o querer do Zé Moleiro que, ao invés do sugerido pela nomeada, desconhecia por completo o ofício da moagem e esquecera a razão do chamadiço. Seria por andar sempre "pintado" de negro em contraste com a alva farinha que mascarava os moleiros ? Com tremendo esforço puxado a vinhaça, derreigava(3) torgas de que extraía carvão, pelo processo tradicional das medas, muito procurado para aquecimento doméstico. Ao início da tarde, carregava o jerico com dois ou três sacos e "ala que se faz tarde" a caminho da Torre Dª Chama, nesse tempo aldeia mais desenvolvida que as suas vizinhas e hoje vila próspera no concelho de Mirandela. Breve granjeou freguesia, gente de relativo desafogo financeiro, que lhe adquiria todo o carvão produzido. Fosse ele económico e ponderado, havia de ter, com certeza, uns cobres amealhados para comprar chãos que lhe dessem outro viver.

    Negócios arrumados, tomava a direcção de casa, puxando o burro pela arreata até à primeira tasca, onde limpava a goela com um copo de três, suficiente para aguentar a secura até à próxima estação. Visitava depois todas as "capelinhas" que lhe ficassem a jeito na Torre, no Vilar ou em Penhas Juntas e em todas tomava assento e emborcava mais uns copos, tentando saciar a inextinguível sede que lhe devorava as entranhas.

    Numa dessas paragens sentara-se num banco corredio a par de outras pessoas, beberricando o tintol e a falar sozinho quando entrou o senhor Américo, homem conceituado na povoação, prontamente saudado pelo taberneiro e por alguns dos presentes. No desejo de se tornar agradável aos olhos de tão importante figura, o dono do estabelecimento chegou-se ao Zé Moleiro e ordenou-lhe que cedesse o lugar ao recém-aparecido. Mesmo com os pirolitos a bater mal, o nosso homem deu-se conta da injustiça. Percebeu que não estava apresentável mas... – que diabo! –, o lugar não era propriamente a Igreja de N.ª S.ª da Encarnação nem o indivíduo era o Abade de Guide. Levantou-se com o aprumo que a situação lhe permitiu e disse ironicamente:

    – Ora, sim senhor ! Levanta-se o carvoeiro para se sentar o senhor Américo !

    Sempre em cuidos(4) por via do pai, a Adelaide, logo que o sol prometia recolher-se, largava à sua procura pelos lugares do costume. De súbito irrompia por onde estivesse, sem cerimónia, invectivando-o pelo mísero estado em que se encontrava. Numa teimosia maior do que as penhas do cerro, que os vapores etílicos reforçavam, o Zé Moleiro resistia às boas intenções da moça como se ela fosse "o tentador" em pessoa. O derradeiro argumento era o maço de cigarros. Deitava-lhe a mão e punha-lho à frente do nariz. Ele bem tentava alcançá-lo, mas a rapariga esquivava-se facilmente. Assim o levava atrás dela pela rua até onde estivesse o jerico, ajudava-o a montar e amparava-o na caminhada de regresso.

    1 Chafurgo – buraco, lugar medonho.

    2 Dias soltos – dias da semana, em contraste com domingos e dias santos

    3 Derreigava – arrancava, tirava para fora.

    4 Cuidos – forma popular e reduzida de cuidados, preocupações.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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