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    Arquivo: Edição de 15-11-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    Sonho renascido

    V ivíamos num bairro para funcionários da Câmara, construído nos distantes anos 50 ali para os lados das Devotas no limite oeste da cidade.

    Eram três fieiras de casas, pintadas de amarelo-ocre, tão iguais entre si como os potes de barro que o tio Caróço exibia na prateleira da sua oficina de oleiro. Cercava-as um jardinzinho alegre que os homens cuidavam nas horas vagas enquanto às mulheres estava reservado o asseio e o governo doméstico incluindo os cuidados com os maridos e os filhos. Era nisso que se distinguiam.

    Num dos extremos do bairro havia uma praça com canteiros de flores e bancos à sombra de tílias e de pessegueiros silvestres. Os Invernos eram tristes mas na Primavera tudo ganhava outra vida, as árvores cobriam-se de folhas e as flores desabrochavam numa explosão de cor e de alegria. À medida que o tempo ia aquecendo, o ar impregnava-se de gorjeios e a brisa trazia o aroma inebriante das rosas, dos cravos, dos jacintos e das flores dos pessegueiros. Esse foi o principal cenário para as brincadeiras do meu pai infante que as expandia para as ruas do bairro junto com os miúdos que ali tinham crescido e outros que se lhes vinham juntar. Algumas vezes refugiava-se na olaria a observar o minucioso trabalho do artífice, a chegar--lhe os objectos de que precisava e a fazer-lhe perguntas, muitas perguntas, que o bom homem tinha imenso gosto em responder, contente de partilhar a sua arte com alguém, particularmente com um rapazinho tão curioso. Foi também por esses lugares que eu brinquei com as minhas amigas muitos anos depois. Nessa altura já não existia o tio Caróço e a oficina dera lugar a uma bomba de gasolina.

    O meu pai poderia ter sido o protagonista de um lindo sonho do meu avô se fosse possível transplantá-lo para a realidade como se faz com uma árvore. Via-o engenheiro, responsável por toda a execução urbana, instalado num gabinete da autarquia onde ele não passara de encarregado de obras; médico conceituado à semelhança dos dois irmãos Moreno, filhos de um ferrador de Sambade, homem humilde como ele; quem sabe se um famoso advogado na senda do lendário Dr. Teixeira Neves, invencível na barra dos tribunais, paladino das causas dos menos favorecidos... O começo foi encorajador: fez toda a escola primária sem perder um ano sequer e deu entrada no Liceu ao som de trombetas imaginárias.

    Essas não eram, porém, as referências do meu pai, talvez nem ele soubesse quais eram. Se lhe perguntassem o que desejava ser mais tarde, provavelmente ficaria tão atrapalhado como se fosse pego a roubar a marmelada que a mãe deixava a secar em tigelas no peitoril da janela. Graças à dedicação e ao esforço continuado da D. Elisa, adquirira os conhecimentos básicos que poderiam encaminhá-lo para o êxito. “Aprende bem – dissera a professora – mas tem pensamento errático”. O meu avô não entendera o significado da última palavra, por vergonha não lho perguntara, mas intuiu que devia ser pouco atento na aula o que já não constituía novidade porque conhecia bem a maneira de ser do rapaz. Quando foi para o Liceu, recomendou-lhe insistentemente que estivesse com atenção nas aulas e, em casa, era pergunta de sacramento se já tinha estudado as lições. A verdade é que estudava muito depressa pois, mal se dava conta, já ele andava na brincadeira.

    As primeiras notas anunciaram a morte do sonho, deram às rabanadas um sabor amargo e custaram ao meu pai uma tareia que nunca mais esqueceu. O castigo não produziu efeito e na Páscoa a alegria da Natureza, o folar e os doces característicos da época de nada valeram devido à persistência do fraco aproveitamento do pequeno. Mais sermões, mais castigos e o solene aviso: “se não passares de ano, vais trabalhar!” Era já um pouco tarde para mudar. No último dia de aulas, o meu pai olhou com tristeza o edifício do Liceu onde não voltaria a entrar como estudante e regressou a casa. Dizia depois que nunca lhe custara tanto a vencer tão curta distância. A sacola dos livros parecia conter pedras tão pesada lhe pareceu. Chorou muito, mais pelo desgosto da família do que pelas consequências da “raposa” que apanhara. Entregou à mãe a folha que recebera na escola, onde constavam as notas assim como a informação de cada professor. Ali podia verificar-se que conseguira obter nota positiva a Português e a Ciências, a Desenho, a Música e a Ginástica, enquanto a Matemática, a História e o Francês determinavam a sua reprovação. O professor de Português escrevera assim: “O aluno tem um fino dom de observador e organiza bem as ideias, embora o faça de maneira nem sempre muito escorreita no que concerne à construção frásica e aos erros ortográficos. Não sabe enunciar nem aplicar as regras da sintaxe.” Por seu lado, a professora de Ciências entendia que “ o menino distingue bem os seres vivos e descreve as suas características em linguagem corrente, no entanto é avesso a definições e à linguagem científica”. Informações positivas deram igualmente os professores de Desenho, Música e Ginástica. Os demais carregavam nas tintas escuras para caracterizarem um aluno distraído, pouco aplicado e com reduzida participação nas aulas. O meu avô não quis ler aquele relatório que qualificou de inútil e, visto que o filho tinha reprovado, manteve a decisão de lhe arranjar um emprego.

    Ilustração RUI LAGINHA
    Ilustração RUI LAGINHA
    Nesse tempo o trabalho infantil e juvenil era encarado com naturalidade. O meu avô conhecia toda a gente da cidade e não demorou a encontrar ocupação para o filho. A tia Ricardina, que tinha banca no mercado, precisava de alguém que lhe fizesse a entrega das mercadorias a domicílio. Avisou que não havia ordenado como, aliás, era regra para todos os aprendizes. As condições foram aceites e o moço começou a trabalhar de imediato. Educado, alegre, comunicativo, logo granjeou muitas simpatias que fizeram aumentar a clientela. Teve ocasião de pôr em prática os dotes de observador, armazenando na sua memória uma quantidade enorme de informações acerca das pessoas e respectivos hábitos de consumo, nível de educação e de carácter, atitudes, opiniões e formas de encarar a vida, qualidades de asseio e de gosto na disposição dos móveis e utensílios domésticos e uma infinidade de outros dados que, sem qualquer intenção definida, lhe davam um conhecimento mais que enciclopédico das pessoas que servia. A patroa mostrava-se reconhecida e, de quando em vez, entregava-lhe ao sair uma cestinha com ovos, um embrulho com fruta, um pedaço de carne que encomendava ao dono do talho ali ao lado, com parcimónia, que os tempos eram difíceis e ela tinha família numerosa para sustentar.

    Um dia o meu avô entendeu que o rapaz deveria aprender uma arte e entregou-o aos cuidados do tio Neca Tarato o mais conhecido canalizador da cidade. Aprendeu depressa e, a cada dia, espantava mais o patrão com as suas qualidades para o ofício e a simpatia que granjeava entre a clientela. Com ele permaneceu até ao tempo de prestar serviço militar.

    No regresso da tropa concorreu para a Câmara e, como não havia lugar no departamento técnico, aceitou integrar a equipa de recolha do lixo. Custou-lhe um pouco de início, mas não demorou a compreender que, além de prestar um serviço muito importante à comunidade, assim podia melhorar os conhecimentos sobre as condições de vida das famílias, os seus problemas e carências. À hora das refeições, com frequência dizia:

    “ A cegonha deixou uma encomenda em casa da família Mesquita no bairro da estação. O senhor Abílio, que já tem três filhos, vai ter agora mais uma boca para alimentar e só com o seu ordenado não vai ser fácil.

    Ou então:

    “A mulher do tio Catita está com um problema sério nos pulmões. Anda a tomar remédios caros e as reformas deles são pequenas.”

    Mas as suas preocupações não ficavam por aqui. Um dia resolveu voltar aos estudos. Em horário pós-laboral, preparou-se para o exame de 2º ano do Ciclo Preparatório que passou com excelentes notas. Tomou-lhe o gosto e inscreveu-se no Curso Geral correspondente ao antigo 5º ano do Liceu. Com muita dedicação conseguiu vencer também essa barreira. Mais um grande esforço e completou o Ensino Secundário. As condições familiares não lhe permitiram seguir um curso superior como tanto gostava, talvez Sociologia ou Economia as suas área preferidas.

    Entretanto, na Câmara, ascendera a outros níveis e ocupava-se agora das questões sociais que ele melhor do que ninguém conhecia. Foi responsável pela implementação e acompanhamento de programas de auto-ajuda e de apoio aos mais carenciados para os quais conseguiu sensibilizar um grande número de responsáveis por empresas locais e cidadãos que nele confiaram sem hesitações.

    Quando saíram os resultados do exame de 12º ano, o meu avô, ainda de boa saúde, chorou de felicidade. Em nossa casa, apinhada de gente, o seu abraço de parabéns foi acompanhado de um pedido de desculpas por não ter confiado nele quando era menino.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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