Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 30-10-2005

    SECÇÃO: Crónicas


    foto
    D. ERMESENDA, A DEVOTA (7)

    A ceia

    Ouve-se um toque de sineta, a ceia ia ser servida no salão grande e para lá se dirigem. Entram então no pétreo salão nobre do Paço de Avioso, que também fazia de sala de armas e de audiências. Lugubremente iluminado por grandes archotes de resina enfiados em toscos anéis de ferro negro oxidado, chumbados às paredes de pedra que estavam adornadas com os grandes escudos armoriados, de chapa de ferro em forma de coração, ricas adargas (escudos) mouriscas ovais forradas a couro lavrado e colorido com brocal de ouro e prata, sobre as escumas e lanças cruzadas dos senhores da Maia, de tempos idos. Em lugar de destaque estava o broquel (pequeno escudo redondo) do patriarca da família, Aboazar Lovesendes e, ao lado, o escudo e o arnês abolados (amachucados) que D. Mendo usou na fatídica peleja de Zalaca. No centro da sala, pendia, das grossas traves escuras de madeira do tecto, grosso cadeado com polé que segurava um grande candelabro de ferro forjado com doze tochas que dava uma melhor luminosidade ao centro da sala onde se situava a mesa nobre. Era a comprida távola (mesa) de grosso carvalho maciço e nodoso, coberta com um mantel (toalha) de linho grosso e cercada de toscos escanos de madeira corridos, tendo, na cabeceira, o grande cadeirão senhorial da mesma madeira, com a águia estendida grosseiramente entalhada na alta espalda, ladeado por escabelos (bancos com espalda) onde tomariam lugar os maiorais e pessoas mais gradas. Estava de costas para a grande lareira de granito fumado, com colunas encimadas por capiteis com relevos visigóticos, onde assentava, atravessada, grossa laje de cantaria lavrada sobre a qual pousavam cascos ferrados com naso (protecção do nariz), capelinas e morriões gradados (elmos c/ viseira de grade) para torneios. Dos lados da lareira que estava apagada com cinza, rama de pinho e restos de toros meio consumidos pelo fogo, viam--se alguns toscos escaparates de madeira donde pendiam pesadas espadas godas de folha larga, toledanas, adagas, preciosos alfanges mouriscos com pedras embutidas, achas e maças de ferro, clavas godas de raiz de roble eriçado e manguais de bola com puas. Encostadas aos cantos, pesadas lanças de faia e diversas ascumas de arremesso

    Quando havia espectáculo de companhias de truões, de passagem, jograis com gorros enguizalhados, saltimbancos, bardos, menestréis ou nobres trovadores errantes, sem eira nem beira, a mesa nobre era encostada à parede sobre um estrado e a estadela (cadeirão) senhorial e os escabelos passavam para o centro, seguidos pelos escanos corridos, de forma a ficarem de frente para o espectáculo e de costas para a parede. Num plano mais baixo, abaixo do sal (gente sem direito ao sal), ficavam as toscas mesas assentes em cavaletes desmontáveis, onde tomavam lugar, os cavaleiros de condição mais modesta, escudeiros, ecónomos, monges, etc. Estes comiam em pratos de madeira ou simplesmente com a carne no pão enquanto os senhores da mesa nobre se serviam em pratos de alaim (estanho fino), quando não eram de prata debruados a ouro gravado, provenientes dos despojos e trofeus ou do quinhão do saque aos agarenos.

    Gonçalo senta-se no cadeirão senhorial como substituto do irmão, chefe da Linhagem, tendo, ao lado direito, a Infanta Teresa, os sobrinhos Mendo, Aurvelido e a sobrinha Goda e do outro lado, Ermesenda, Gontrode, Urraca, Maior seguindo-se os maiorais, o alferes Diogo Ermiges, o vílico primo Piniolo, o capelão Tarcísio, chefes da guarda, cavaleiros. Era um dia normal e a mesa era familiar, sem qualquer cerimonial.

    Ilustração RUI LAGINHA
    Ilustração RUI LAGINHA
    Goda ou Godo, a jovem filha de Soeiro e Gontrode, ainda na puberdade mas já muito airosa, já andava a ser requestada pelo jovem galante homem de lança e mestre de cavalaria, Paio Petriz, o Romeu, que era da família dos de Ribadouro e dos Sousões, Senhor de Porto Carreiro, Abragão, Vez de Avis, Maureles e couto de Vila Boa de Quires, lá para os lados de Riba-Tâmega e que a conheceu no bafúrdio (torneio) de Avyosso.

    Após a oração de graças ao Senhor, os casqueiros chatos de pão meado de trigo e centeio sem fermento são postos na mesa pelos servos de forno e depois os tabuleiros de madeira com vianda de cerdo bravo assado no espeto e as travessas de estanho com as aves e caça, tudo enfeitado e aromatizado com ervas e plantas aromáticas enquanto os escanções com picheis de estanho com vinho e cidra vão enchendo os cálices, uns de estanho, os dos senhores de prata dourada com pedras embutidas e as concas com cerveja caseira. Como não havia garfos, tudo comia com as mãos ou espetando os nacos com a faca com que cortavam a carne e o pão. E, por fim, vinham as tinas com fruta ou doce de natas e ovos com frutos secos, os gomis com água e as lavandas de estanho para as abluções no fim do repasto.

    Rondando a mesa, com olhos ougados, grandes lebreus e alões esperavam o osso chuchado que viria, atirado para o lajedo do chão ou o naco de pão untado com a gordura e o molho da carne. No fim, os restos de comida que ficavam no lajedo do salão, serviam para pasto de ratazanas que, no escuro da noite, disputariam com a gataria do solar, os restos da refeição.

    A jornada para Leão e a doença de D. Ledegúncia foi o tema da conversa durante o grave repasto onde a costumada alegria e animação não tiveram lugar, como é óbvio e D. Maior e Ermesenda retiraram-se cedo, despedindo-se da infanta e dos sobrinhos que partiriam ao aluzecar. Tinham as suas obrigações para com Deus, a cumprir.

    Por: Reinaldo Beça

     

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].