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    Arquivo: Edição de 30-10-2005

    SECÇÃO: Cultura


    Maiêutica precoce da notoridade portuense

    Imagine o leitor um conjunto de notáveis portuenses, ligados às artes, à ciência, ao espectáculo, à política, à economia. Imagine os seus passos de amadurecimento, quando adolescentes frequentavam as escolas do Porto em que cresceram, do ponto de vista do método, da sensibilidade, da inventiva. Que lugares são esses? Pulsam ainda por lá esses fantasmas dos meninos de então, agora ilustres? E que memórias guardam estes notáveis daqueles lugares? Como os marcaram? Um ferrete a arder na carne viva? Ou um benfazejo banho de imersão como aquele em que o discípulo de Buda inquiria o mestre sobre o nada, e com o qual Brecht esgrimia para mostrar as brasas quentes do capitalismo sob os pés?

    “Ecografias do Porto”, agora lançado pela Areal Editores, assenta nessa interrogação pertinente. Produto da mente irrequieta de José Soares, que além do conceito, realizou a fotografia, o livro conta com o design de Francisco Providência e o texto de Fátima Pombo. Exercício de desvendar essa verdade escondida no útero do Porto, a obra conta com os depoimentos (e memória) de Augusto Santos Silva, Belmiro de Azevedo, Isabel Azevedo,Júlio Machado Vaz, Júlio Resende, Madalena Sá e Costa, Manoel de Oliveira, Mário Cláudio e Rui Reininho.

    Foto JOSÉ SOARES
    Foto JOSÉ SOARES
    No texto de introdução ao livro, esclarece Fátima Pombo: «Eco... é um elemento duplo de formação de palavras que exprime tanto a ideia de repetição (reportando-se ao fenómeno físico da propagação refelectida do som, do gr. ekhó) , como a ideia de casa (ambiente doméstico, do gr. oikos); as suas extensões semânticas levam-nos tanto para a filosofia como para o ambiente. Quando associado a grafia, “ecografia”, ganha uma dimensão de registo gráfico, que também serve para identificar o sistema de visualização interna de órgãos, por reflexão sonora, através da opacidade do corpo.

    As ecografias, no plural, inquirindo alguns dos seus mais notados cidadãos, defendem uma multiplicidade de representações com que desejamos ver disseminado o Porto, cidade.

    Ecografias do Porto é um projecto que nasceu do encontro de três autores (até então desconhecidos), cujas afinidades se revelaram maiores, reunidas em torno do projecto editorial e educativo da Areal Editores; a eleição do Porto como lugar de in-formação afirma-se pela palavra, pelo desenho, e pela fotografia, aqui convergentes (...)».

    E no texto “Chaves de Casa”, diz ainda a mesma autora: «(...) Para incentivar o jogo do sentimento de si escolheram-se para este livro alguns locais de ensino do Porto, mobilizados por instantâneos fotográficos que mostram desses lugares detalhes eloquentes, metáforas vivas de espaços habitados há muitos anos por muitas gerações, portadoras de diversos futuros possíveis. Para dar vida a essas metáforas, quase mágicas, convidaram-se algumas personalidades destacadas da cidade portuense, pedindo-lhes, através de quatro perguntas--padrão o testemunho sobre o modo como a experiência desses lugares afectou a construção do seu conhecimento, impregnou a singularidade da sua participação no mundo e integrou aquelas duas ou três ocasiões em que se tomam decisões fundamentais na vida (...)».

    As narrações dessas memórias de descoberta fazem--nos descobrir lugares e personagens insuspeitos.

    Entre eles e quase ao acaso catrapiscamos, por exemplo, Augusto Santos Silva: «Nos meus 15 e 16 anos, andava então no que hoje se chamaria o 10º e o 11º anos, um enorme grupo de jovens, no meu [Alexandre Herculano, ndr] e noutros liceus e escolas da cidade (do país) que fez uma ruptura colectiva com o regime político e o ambiente moral que nos queriam proibir de ler os livros que queríamos, ver os filmes de que gostávamos, ouvir as músicas que preferíamos, viver o amor e a sexualidade como partes festivas de nós. Foram tempos de enorme felicidade, ousar experimentar, libertar-se (...)».

    Ou, por exemplo, Júlio Machado Vaz: «Fiz todo o meu trajecto escolar no Colégio João de Deus.

    Agnóstico por tradição familiar e posterior opção, tive a felicidade de ser ali “presenteado” com uma visão do Cristianismo passível de inspirar todos e não apenas os católicos. Essa mensagem de aceitação de uma via exclusivamente humana para a busca da transcendência marcou--me profundamente (...) ».

    Entre as escolas visitadas pela objectiva de José Soares contam-se o Conservatório de Música do Porto, a Faculdade de Economia, a Faculdade de Medicina, a de Belas Artes, a Escola Secundária Alexandre Herculano, a Carolina Michaelis, a Soares dos Reis, a Infante D. Henrique, duas delas curiosamente em tempos frequentadas por quem rabisca estas estas linhas, o que torna este exercício de escrever, simultaneamente um novo acrescento da memória.

    O objecto – design de Providência (com fotografias de José Soares e o texto de Fátima Pombo), de capa em forma de quadrado perfeito, foi recentemente lançado e apresentado ao público na Livraria Bertrand do shopping Dolce Vita. Pena que nenhum dos notáveis entrevistados tenha podido estar presente, tal como o designer. E Fátima Pombo só o conseguiu viajando de propósito de Barcelona para o Porto. Uma falha imperdoável dos promotores do livro que contrasta pela evidência com o rigor dos responsáveis pela sua execução.

    Por: LC

     

     

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