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    Arquivo: Edição de 15-10-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    Só peru morre de véspera

    Uma década após a segunda Guerra Mundial, os grandes países da Europa Atlântica e respectivas populações já não lambiam as feridas causadas pelo terrível conflito, antes se empenhavam com fervor na reconstrução, num ímpeto de desenvolvimento sem precedentes. Este nosso cantinho não era mais do que um charco de águas estagnadas onde as rãs tentavam a sobrevivência indiferentes à placidez e ao bucolismo da paisagem.

    De pouco serviam as loas que os estrangeiros entoavam à beleza do país e à hospitalidade das gentes e que o regime encarecia como se outros valores não houvesse mais básicos e inadiáveis: a satisfação dos anseios e necessidades a que todos os humanos têm legítimo direito. Muitos saltavam do charco em busca de sítios mais promissores, outros, conformados ou não, prosseguiam a luta humilde de arrancar pão e pomos de inaudita doçura às pedras da serra.

    Porque “ninguém enriquece a quebrar cabos de enxadão”, havia quem procurasse fortuna por meios ilícitos, adestrando-se no jogo da batota que requeria, acima de tudo, sagacidade, bons reflexos e poucos escrúpulos. Uns tantos ainda conseguiam deitar-lhe a mão por incerto tempo, o bastante para impressionar aqueles a quem a crueldade do destino parecia ter condenado a perpétuo suplício.

    Homens da noite, nas escassas aparições em público, um que outro exibia fato de bom corte, gravata e lencinho de bolso a condizer, grossos anéis de ouro nos dedos, cara bem escanhoada, perfumes desconhecidos e cabelo submerso em ondas de brilhantina. Vistos com desconfiança à luz da exigente moral da época, exerciam, contudo, grande fascínio sobre as jovens humildes das aldeias que frequentavam, em ânsia por una vida mais desafogada o que as tornava presas fáceis mas capazes de, por eles, afrontar a reprovação geral.

    O Salceda era o protótipo desse espécime. Além de uma presença agradável, distinguia-se pelas suas maneiras corteses e linguagem urbana, cativantes, muito diferente da maioria dos seus pares. Enviuvara muito cedo e dessa união herdara uma filha que viria a ser professora primária. Era uma jovem de carácter bem formado e de espírito aberto, capaz de aceitar o procedimento do pai, embora não o aprovasse. Ainda na flor da vida juntou-se com a Isaura, rapariga de família pobre e pouco conceituada na comunidade de Piteirões. Que teria visto nela o Salceda? Talvez a frescura da sua juventude porque, de resto, parecia não terem grandes afinidades. Sem beleza nem instrução, apresentava até algum desequilíbrio no seu relacionamento social. Fora esperta – comentava-se – em caçar um homem como ele, bem-posto, endinheirado, de aspecto fidalgo. Quanto ao Salceda... bem, podia ter arranjado coisa melhor.

    Tiveram três filhos, mau grado as passagens intermitentes pela aldeia. Um dos mais novos, bom estudante, formou-se em Medicina com o auxílio da irmã mais velha. Algumas vezes ainda apareceu em Piteirões para visitar os pais e a todos deixava excelente impressão pela simplicidade no convívio com as pessoas da terra, ele o menino pobre que se fizera doutor e vivia em Lisboa.

    Como era de prever, um dia a roda começou a desandar. O Salceda deu-se conta de que já não era o mesmo jogador, os reflexos falhavam amiúde, a argúcia dos mais novos suplantava a sua larga experiência, perdia agora com maior assiduidade. No entanto, um vício de muitos anos é grave doença, resiste às terapias mais fortes, exige enorme força de vontade para ser contrariado, qualidade que estava muito longe de possuir.

    Em menos de um ai, foi-se o dinheiro, venderam-se os anéis e os cordões de ouro que, em tempos de bonança , oferecera à mulher, falhou o bom trato e a vida airada. Desfeitas as ilusões, a pobreza apareceu ante seus olhos com o rosto de horror que a caracteriza. Na primeira vez em que segurou o cabo das ganchas quase as deixava cair, tão pesadas lhe foram. Arriscou algumas cavadelas e as mãos encheram--se-lhe de bolhas, sangraram e não tardou que dali adviessem calos. Na companhia da mulher foi-se habituando a palmilhar quilómetros por caminhos de cabras e carreiros pedregosos que lhe puseram os pés em estado lastimoso, para alcançarem um chão distante onde passavam dias a cavar, a plantar ou semear, a mondar, a regar e a colher os magros frutos do seu labor. Descanso, apenas ao domingo quando, satisfeito o preceito religioso, recolhia a casa e por ali ficava sentado, o olhar baço e distante dos que perderam a capacidade de sonhar.

    O VELÓRIO

    Foi emagrecendo. As roupas, feitas à sua medida antiga, davam-lhe agora, ao caminhar, uma aparência de espanta-pardais cinético. Não obstante a crescente perda de peso em resultado da má nutrição e do trabalho violento, era cada vez mais vagaroso o seu andar, cansava-se muito para produzir quase nada. A Isaura, na sua ignorância, ralhava com ele e praguejava, ciente de que tudo não passava de preguiça. O Salceda ouvia calado na certeza de que seria inútil dizer fosse o que fosse.

    Por esse tempo, o governo desenvolveu um programa de plantio e ordenamento da floresta e contava com a mão-de-obra barata das populações locais. Em cada aldeia os mais necessitados acorriam à zona de intervenção ainda cantavam os galos, de enxada ao ombro e panela com as batatas do almoço dentro da saquinha de pano, e regressavam já a tropeçar na espessura das sombras após um dia de intensa moideira. A Isaura e o Salceda entravam nesse rol, um dia e mais outro que a fazenda era pouca e grande a precisão. A Isaura era robusta e trabalhadora mas o homem, nessa altura, já “mal podia com um gato pelo rabo”. O Manso de Carrazedo, capataz da zona, conhecia bem a situação e deixava que outra pessoa o auxiliasse no cumprimento da respectiva tarefa, por regra a Isaura, mas havia sempre alguém pronto a dar a mão, que os pobres são invariavelmente os mais solidários. Se farejava a vinda do engenheiro responsável, encontrava um jeito de ocultar a irregularidade, desculpando a sua ausência com uma indisposição de momento que o obrigara a recorrer à protecção das fragas.

    À medida que o tempo corria, o homem ia definhando. De quando em quando, não conseguia já levantar-se, apesar das injúrias da mulher. Antes de sair, porém, ela deixava-lhe uma malga de chá de ervas e alguma coisa para comer que encontrava intacta ao regressar. Recuperada alguma energia, lá voltava ele a subir encostas e a descer veredas, fustigado pelos arbustos, os socos a embicarem nas pedras e nas raízes mais salientes, para se apresentar ao serviço... Chegava atrasado e o Manso fazia vista grossa. Até que deixou de aparecer e rapidamente se aproximou do último horizonte. Já não saía da cama, não comia, a respiração tornou-se quase imperceptível.

    Certa ocasião, a Isaura, entrando em casa, encontrou-o imóvel, hirto, muito pálido. Saiu a correr, de mãos na cabeça, a gritar que o seu homem tinha morrido. Acudiram vizinhas, começaram os lamentos e os choros. A Isaura pediu que fossem ao telefone público, encomendassem uma urna barata ao senhor Monteiro e avisassem o pároco para marcar a hora do funeral. Vestiram-lhe a roupa menos má, calçaram--lhe os únicos sapatos que possuía. Quando a urna chegou meteram o Salceda dentro e deram início ao velório. Pessoas iam chegando, confortavam a viúva rezavam uma oração e ficavam algum tempo num gesto de solidariedade. Depois da ceia algumas mulheres vieram, sentaram-se nas poucas cadeiras existentes, prontas a passarem ali o resto da noite.

    De madrugada quase todas dormitavam envoltas nos seus xailes. Uma, que se mantinha acordada, reparou que o peito do homem se elevara num movimento muito brando. Esfregou os olhos, não a tivessem eles atraiçoado, e fixou-os bem no corpo à sua frente. Não havia dúvida, o movimento tinha-se repetido. Cutucou a vizinha da direita, que se pôs em sobressalto, e fez um gesto na direcção da urna. Agora eram mais regulares os movimentos. Em segundos todas tiveram a certeza de que o “morto”, afinal, estava vivo e correram em direcção à porta, assarapantadas, aos gritos, tomadas de genuíno pânico. Fosse a escaleira mais alta e, da queda colectiva, teriam resultado ferimentos graves, quem sabe até se alguma morte a sério. Felizmente foi apenas o susto resultante de terem caído umas por cima das outras mas, à gritaria das mulheres juntou--se o cacarejo das galinhas até então bem tranquilas no seu poleiro e até o galo, assim mal informado, entoou um solo a preceito.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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