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    Arquivo: Edição de 30-08-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    Onde se conta como um “chapeau” ia provocando grande chapelada

    Na década de 50 operavam-se já profundas mudanças em todos os domínios da vida, ainda que as pessoas mal dessem por elas. Tudo parecia fluir segundo as velhas convenções, iam-se mantendo hábitos que se perdiam na névoa do passado. Aldeãos e citadinos mantinham os respectivos estilos e comportamentos, “cada mocho no seu souto”, encontrando-se em dias pré-determinados nas feiras da vila ou da cidade, mais raro noutras ocasiões.

    Ali chegava o camponês comum, pedibus calcantibus, vencidas dezenas de quilómetros, para fazer as suas mercas ou vender os minguados produtos da sua criação, e também o lavrador de maiores recursos, tronco erecto no seu lustroso e bem ajaezado cavalo ou égua em trote compassado, a mão direita a tocar a aba do chapéu em resposta aos cumprimentos dos transeuntes, naquele ar pimpão de morgado rural. A feira era espaço de negócio, de ostentação e de informação num tempo em que as ondas hertzianas não estavam ainda ao alcance da gente campesina e a grande maioria da população era analfabeta.

    De resto, havia em muitas povoações um sóto, espécie de estabelecimento onde mercearia e produtos vários podiam ser adquiridos e onde os lavradores se juntavam ao comerciante, também ele lavrador, falavam do estado das sementeiras e perspectivas de colheitas, e riam das suas pequenas histórias, nos raros momentos de pausa que o apertado calendário agrícola permitia.

    Em Penhas Juntas o senhor Almendra possuía um desses espaços de bem vender e “mal” dizer. Certa ocasião, remexendo nos seus estoques, descobriu uma caixa onde um chapéu em desuso por muito pouco não entrava em letargia profunda. Conhecedor dos segredos do ofício, comentou para um dos seus parceiros de boa disposição:

    ILUSTRAÇÃO: Rui Laginha
    ILUSTRAÇÃO: Rui Laginha
    – Tenho que passar este mono e até já sei a quem.

    Lobrigando do outro lado da rua o nosso já conhecido Manuel Cezílio, comentou:

    – Falai no diabo... Ó Manuel, chega aqui num instante que tenho um assunto urgente p’ra falar contigo.

    Na boa-fé, o homem aproximou-se, curioso por saber que novidade lhe reservava o comerciante que entretanto espanara bem a caixa a dar--lhe um ar menos suspeito:

    – Como eu sei que és uma pessoa de bom gosto, mandei vir este artigo expressamente para ti. Ora, repara bem nesta maravilha! Diz lá se já viste alguma coisa que se pareça.

    A PRECIOSIDADE

    Tirava o chapéu da caixa como quem manipula uma jóia e colocava-lho à frente do nariz. Sorria a apreciar o efeito. De pronto segurava o chapéu com toda a delicadeza, introduzia a mão esquerda no seu interior e fazia-o girar, ao mesmo tempo que entre o polegar e o indicador da direita aflorava o correr da aba no que parecia contrariar as leis da dinâmica. Aparentando absoluta convicção, enfatizava as virtudes do artigo com recurso às figuras de estilo que aprendera no Liceu.

    O homem em pré-hipnose, já sem grande convicção, ainda tentou reagir:

    – Ó senhor Almendra, quanto a chapéus estou servido, p’ra qu’é qu’eu quero outro?

    O comerciante fingiu ter ouvido, além de grande ofensa, um tremendo disparate:

    - Tu disseste chapéu? Isto não é um chapéu, é um “chapeau”, não te esqueças um “chapeau”, a maior novidade na elegância masculina, só para pessoas de bom gosto.

    O Cezílio estava definitivamente rendido aos argumentos do senhor Almendra. Ainda regateou mas, atendendo ao valor atribuído à mercadoria, convenceu os seus botões de que fizera um excelente negócio.

    Daí em diante, nos dias de festa ou quando tinha que se deslocar à vila, vestia-se a preceito fazendo justiça ao seu inigualável “chapeau”, o pormenor artístico que emprestava mais-valia ao conjunto. Percorria as ruas da urbe com a altivez dum oficial em revista às tropas em parada, levando a mão à aba para saudar conhecidos ou apenas supostos. Quando as boas maneiras exigiam que ficasse descoberto, prestava a maior atenção à sua preciosidade e entrava em pânico se não a encontrava de pronto:

    – O meu “chapeau”? Onde está o meu “chapeau”? – interrogava ansioso.

    A PARTIDA

    Tanto cuidado acicatou a travessura da rapaziada da aldeia. Os moços gozavam à brava com os contornos da história e esperavam com impaciência ocasião oportuna para lhe pregarem uma bela partida.

    No dia da festa anual, a aldeia regurgitava de forasteiros. Na taberna do Lourenço não havia mãos a medir. Pela tarde a sede apertou e o Cezílio acercou-se do balcão. Receoso de que o suor lhe manchasse o chapéu ou que alguém aproveitasse uma distracção sua para lho surripiar, pediu ao taberneiro que lho guardasse ao que ele acedeu cheio de boa-vontade.

    Pediu um copo do tinto que o Lourenço comprara recentemente a um produtor do Douro e, despreocupado, foi entrando nas conversas que se desenrolavam a seu lado. Enquanto saboreava a boa pinga, não perdia sentido da mesa de chincalhão, por sinal muito animada, dava parecer sobre as jogadas, relatava episódios que presenciara noutras circunstâncias, gabava a arte do bluff e a discrição dos sinais entre os parceiros do jogo. O tempo deslizara sem que ele se tivesse apercebido. De súbito achou que era forçoso regressar, que até em dia de festa há deveres a cumprir. Pediu o seu “chapeau”.

    O Lourenço foi prontamente ao lugar onde o tinha guardado mas, para seu grande espanto e aborrecimento, não o encontrou. Perguntou à mulher e aos filhos que tampouco sabiam do seu paradeiro. Deu uma volta completa ao estabelecimento e ao quartinho dos fundos onde o tinha deixado. Nada.

    – Olha, Manuel, não consigo encontrar o teu “chapeau”. Não está onde o tinha guardado e, por mais voltas que dê, não há maneira de aparecer.

    – O que é que me estás a dizer? – perguntou o outro com o sangue a ferver-lhe nas veias. – Queres que eu acredite nisso ? Põe-me já aqui o meu “chapeau” antes que eu próprio o vá buscar.

    Acto contínuo pulou o balcão e começou a vasculhar nervosamente nas prateleiras, derrubando algumas das mercadorias expostas. O Lourenço tentou segurá-lo mas o homem parecia possesso:

    – Tem-te, Manuel, não me descomponhas as prateleiras que isso custou dinheiro –, advertiu o taberneiro.

    – Se tens tanto amor ao dinheiro, devias ter mais respeito pelo dinheiro dos outros –, ripostou o Cezílio furioso enquanto prosseguia na sua busca.

    – Já te disse que o chapéu, ou lá como tu lhe chamas, não está aqui. Algum engraçadinho quis-te pregar uma partida e levou-o. Fica descansado que eu não me chame Lourenço se não descobrir o que aconteceu. Dou--te a minha palavra de honra.

    – Eu já não acredito na tua palavra. Confiei em ti e enganaste-me. Isto não fica assim, podes ter a certeza –, ameaçou o Cezílio ao sair, dedo apontado ao taberneiro.

    Não foi preciso encetar nenhuma averiguação porque o Júlio, um dos rapazes que pretendiam divertir-se à custa do Cezílio, foi procurá--lo no dia seguinte, assumiu a responsabilidade e contou como tudo havia acontecido. Fez o mesmo com o Lourenço e prontificou-se a pagar os prejuízos causados pela fúria do Cezílio. Um aperto de mão entre os três selou a paz e fortaleceu a amizade.

    Por: Nuno Afonso

     

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