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    Arquivo: Edição de 15-07-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    “Do contado come o lobo...”

    Fosse por ter maus bofes, por se julgar maltratado pela vida, pelas duas coisas a um tempo ou ainda por outros motivos, esse Manel não era flor que alguém gostasse de usar na botoeira da jaqueta. Tinha "letras" – dizia-se – mas estudara tanto que acabou por ficar de miolo mole e abandonou os livros.

    Natural de "por i a baixo"1, viera há muitos anos para Penhas Juntas e ali se fixou. Botava a cria 2 dos Crestinas e fazia trabalhos ocasionais para quem o chamasse. Comia onde lhe davam que fazer ou em casa de alguma boa alma condoída pelo seu desamparo. De herança familiar ou por qualquer forma de apropriação que não vem ao caso, tinha um ou dois chãozitos ao cimo do povo e ali cultivava hortaliça em horas de maior folgança. Mesmo sem nunca a utilizar, recusava ceder umas folhas de couve, uma mancheia de grelos ou nabiças, um ramo de flores dos arbustos que plantara em redor a quem tivesse necessidade ou desejo. E ai de quem lhe violentasse a mesquinhez! O nosso homem não dava de barato essa afronta, ia com certeza exigir explicações.

    Daí o nome que lhe deram de Manuel do Génio. Não se metia na vida de ninguém, era respeitador mas, se "a mostarda lhe subisse ao nariz", não pensassem que ficaria por isso mesmo. Já tivera algumas escaramuças por via dos abusos, felizmente sem consequências trágicas.

    Se admitimos por regra que os ditados populares são resultado de uma sabedoria comprovada pela experiência de épocas sucessivas, temos também que aceitar a possibilidade de haver excepções. A nossa gente afirma que "nunca falta um chinelo velho para um pé aleijado" quando se trata de arranjar casamento mas, neste caso, não parecia grande o aleijão, mais certo seria que o próprio Manuel, consciente do seu temperamento, receasse tornar infeliz alguém que lhe saísse na rifa da vida. Quem está de fora, no entanto, vê as coisas de outro modo:

    – De boa se livrou a infeliz que o quijesse! – sentenciou o Zé Malino, expressando a opinião geral –, só havia de ter fartura de porrada.

    Com efeito, quem passava à porta do curral dos Crestinas ouvia-o, algumas vezes, ralhar com a hipotética mulher e, depois de acalorada discussão, desancar nela "como em centeio verde". Uma pele de ovelha suspensa de um caibro servia à maravilha para ser energicamente curtida pelo Manuel nestes seus entremezes, servindo-se do cabo de uma enxada.

    Sempre que via o Manuel do Génio desocupado, a tia Maria Bela concluía que não tinha a ceia garantida e vá de o convidar a comer o caldo em sua casa. Estava certa de que ele fazia gosto na companhia dela e da família porque a senhora, além de solidária, era bem--humorada e amiga de uma boa conversa. Embora pouco expansivo, o convidado falava bastante e até se ria, espicaçado pela anfitriã. A vida quotidiana fornecia bons motivos para exercitar a língua e alegrar o espírito.

    Numa dessas ocasiões, a tia Maria Bela não encontrou na horta couves a seu gosto para fazer o caldinho que o Manuel apreciava. Divertida, viu na falta uma boa oportunidade para o pôr à prova. Sem dar nas vistas, dirigiu-se ao chão do seu convidado que tinha belos pés de couve a pedirem para ser colhidos. Seleccionou um braçado de folhas das mais tenras e, com o mesmo recato, foi preparar a ceia.

    Findo o repasto, o Manuel teve palavras elogiosas para a cozinheira antes de se despedir. Pior foi quando deu pelo "assalto" ao seu couval. Pôs-se a matutar em quem poderia ter-lhe feito tão grande ofensa. É claro que tinha suspeitas e elas recaíam em pessoas pelas quais não alimentava réstia de estima, mas pedir-lhes contas é que seria o cabo dos trabalhos porque não havia outras provas além do sentimento e este não possuía valor em tais instâncias. Sabia que, mesmo no caso de alguém ter assistido ao furto, se fecharia em copas.

    Para seu consolo, havia pegadas bem nítidas. Com o auxílio de uma fita métrica, anotou as impressões solares do(a) intruso(a) e foi, povo atrás, povo adiante, exigindo meças a todos quantos encontrava. Esperou, com paciência, que regressassem do campo os que por lá andavam. Só escapou à devassa a tia Eufrásia que estava a ser velada nesse dia.

    A última a receber o inquiridor foi a tia Maria Bela, mais para este lhe contar as últimas que para outra coisa. E contou que lhe tinham ido às couves, mas que havia de saber quem era o autor da desfeita, que para isso trazia ali a fita métrica e já tinha tirado as medidas a toda a gente da povoação. Teria esquecido alguém?, era a dúvida que lhe ocupava a mente.

    E já se despedia quando a tia Maria Bela estendeu o pé e lançou o desafio:

    – Então não vai medir também o meu?

    – Qual! Não vale a pena. Aquilo era rasto de botinha fina.

    1) Diz-se da pessoa de fora, forasteiro.

    2) Diz-se do acto de conduzir os animais de tiro para os lameiros e tomar conta deles.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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