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    Arquivo: Edição de 15-04-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    A benemérita

    Não houve poesia naquele distante adeus há quase meio século, nem abraços de sufocada tristeza, lamentações ou indícios de prematura saudade. Talvez o banal pedido de umas "mal traçadas linhas" tão logo chegasse ao destino, um breve enternecimento do olhar e pouco mais.

    Esse Brasil, para onde a Júnia embarcaria dentro de alguns dias, era ainda um sítio mitológico do outro lado da vida. No espírito dos que ficavam equivalia nada mais do que a uma separação definitiva. Sabia-se que a viagem seria longa, que, nos vapores da época, os passageiros, eram transportados como gado, que o trato e a falta de higiene a bordo eram propícios à manifestação de doenças quantas vezes mortais. Dessas más condições dera testemunho o Zé Tarela de Castrelos em carta aos pais, após a chegada ao Rio de Janeiro. Pior ainda foi o caso do Manuel Sobreiró, de quem não houve mais notícias depois que partiu, tendo sido infrutíferas todos as diligências que o irmão empreendeu ao longo dos anos.

    Para a família, a separação representava um alívio económico, o levantamento de um prato à mesa, a poupança de alguns tostões com as roupitas modestas e os socos de amieiro. Seria também o fim das preocupações que uma adolescente sempre acarreta, logo esta tão namoradeira, ainda que de aspecto pouco atraente, capaz de se deixar seduzir por um farsola qualquer, situação vulgaríssima que culminava em abandono à primeira notícia de gravidez. A rapariga perdia-se por um bailarico aos domingos e dias de festa, apreciava as malhas quando rapazes e raparigas se enroscavam, em eiras e palheiros, no transporte e acomodação dos coanhos (1), nada lhe custava transpor a serra, pedibus calcantibus, (2) nos dias de feira, desde que houvesse boa companhia para conversar e folgar, mais de duas horas de caminho, por carreiros, entre soutos e carvalhais.

    De rija têmpera, a Júnia saiu-se com bravura da travessia atlântica, porém o Rio de Janeiro assustou-a, tanto mais que não possuía referências, tendo ficado provisoriamente instalada no Serviço de Imigração. Valeu-lhe o relacionamento que travou com outras patrícias durante a viagem. Apoiaram-se mutuamente e puseram-se, de imediato, em busca de emprego. Ao fim de alguns dias de peregrinação e muitas recusas, admitiram-na como criada para todo o serviço numa hospedaria onde arrumou os seus míseros pertences.

    Na passagem dos anos sucederam-se os empregos, o último dos quais em casa de um rico ourives judeu. O seguimento da história tem contornos reconhecíveis: a patroa morre e o viúvo, por familiaridade adquirida, receio do desconhecido ou qualquer outra razão, amanha-se com a serviçal. O casamento trouxe-lhe dinheiro, posição e um único filho. Os mais idosos habitantes da aldeia ainda se lembram daquele jovem brasileiro que, nos anos 40, por lá apareceu fugazmente para conhecer a terra da sua mãe.

    – Vinha bem preparado, mas via-se que andava doente –, explicava o tio João Morais nos seus bem conservados 80 anos. Procurou pelo Joaquim Gaiteiro mas foi ao próprio que fez a pergunta, porque a casa dele era logo a primeira à entrada da povoação e o homem, tolheito (3) como estava, sentava-se ali à beira do caminho a fazer ligas para os chapéus de palha. Acho que o moço deve ter ficado desgostoso com a pobreza da casa e nem quis subir a escaleira. (4) A tia e os primos desceram à rua e conversaram ali mesmo no caminho mas ele não demorou a entrar no táxi que o trouxera e rumou à cidade.

    Viria a morrer pouco depois. A D.ª Júnia, que já era viúva, tornou-se herdeira única de uma grande fortuna. O marido desfizera-se dos negócios e deu-lhe indicações para aplicar o dinheiro com sabedoria.

    A INSISTÊNCIA

    FOI TANTA...

    Na aldeia, o irmão e os sobrinhos julgaram chegada a hora de obter dela o apoio de que tanto careciam. A correspondência que sempre tinham mantido tornou-se mais regular e as cartas, que lhe escreviam, chegavam túmidas de lamentações e de elogios à sua generosidade, embora não recebessem dela grande demonstração de afecto. De caminho, lembravam também as necessidades da aldeia: a escola já não tinha condições para cumprir a missão que dela se esperava, o cemitério precisava de ser aumentado, na igreja as pessoas tinham que assistir às cerimónias em pé ou ajoelhadas no soalho, porque não havia bancos para maior conforto dos fiéis. Outras havia, contudo estas eram as mais prementes.

    O povo tinha de uma pessoa da terra, com a riqueza que lhe atribuíam e que ela se esforçava por minimizar, esperanças remotas de ajuda mas, uma vez que tais sentimentos não pagam imposto nem exigem despesas de manutenção, aguardavam pacientemente que um rasgo de benemerência lhe tocasse o coração.

    A insistência foi tanta que a D.ª Júnia decidiu enviar "carta de chamada" aos dois sobrinhos António Cuco e Maria da Conceição. Para ele, adquiriu um café no subúrbio carioca de Campo Grande, à época um valhacouto perdido lá onde Judas pendurou a corda, a duas horas de viagem de trem desde a Central do Brasil mais uma boa caminhada por densa mata, construção tosca sem instalação eléctrica ou água canalizada. Tipo habilidoso, com as primeiras economias o Cuco adquiriu um gerador, mobilizou uns vizinhos caipiras que o ajudaram a captar água de ribeiro próximo e, assim, "foi tocando a vida" enquanto pôde. Os ganhos eram escassos e, um belo dia, conseguiu vender o negócio e apareceu em casa da tia a pedir-lhe ajuda para se instalar num sítio mais favorável. Vendo recusada a pretensão, regressou à terra deixando para trás os sonhos que acalentara. A meia dúzia de patacos que trazia empregou-os na compra de um altifalante com o qual, durante muitos anos, animou as festas das redondezas. A Maria da Conceição serviu em casa de um oficial do exército, mais tarde constituiu família e do Brasil fez a sua pátria definitiva. Da tia nem quer ouvir falar.

    Ilustração de Rui Laiginha
    Ilustração de Rui Laiginha
    Quanto à aldeia que a viu nascer, a D.ª Júnia entendeu mandar construir ali uma escola nova, obra modesta que ofereceu ao Estado Português e que veio inaugurar com todo o aparato das grandes ocasiões. Mal localizada, de construção duvidosa, muito depressa abriu rachaduras nas paredes e no tecto por onde o frio e a chuva entravam sem qualquer cerimónia, com enorme risco para a saúde das crianças. Hoje encontra-se em ruínas, no pátio crescem livremente silvas e ervas daninhas, mas a placa de mármore, à entrada, continua a proclamar a generosidade da grande benemérita que a mandou construir.

    (1) Palhinha miúda expelida pela debulhadora, e que contém ainda algum grão. Serve para alimentação do gado.

    (2) Expressão alatinada utilizada para exprimir o andar a pé.

    (3) Entrevado.

    (4) Forma do galaico-português equivalente a "escada".

    Por: Nuno Afonso

     

     

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