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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-03-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    O Doutor Rodrigues

    Em meados do derradeiro século Bragança era uma cidadezinha isolada, pacata, provinciana por desígnio de quem de longe mandava. Digo isto segundo as coordenadas actuais e o horizonte de memória que preservo. Apresentava-se-me como um universo cheio de mistério e razões para deslumbramento: as ruas de macadame, as casas ordenadas a um e outro lado das vias públicas, as vitrines dos estabelecimentos comerciais, a circulação de raros veículos a motor, o garboso trote dos cavalos cujas ferraduras provocavam chispas nos paralelos, conduzidos pelos lavradores mais abastados das aldeias vizinhas, a gente da cidade trajada com outro aprumo e usando uma linguagem diferente, estudantes sobraçando livros e exibindo ditos jocosos a provocar risos, o desembaraço e a gentileza dos caixeiros, o aprumo orgulhoso dos funcionários. Talvez não fosse mais do que o apelo à lembranças dos meus primeiros anos de vida numa grande cidade, que a continuada permanência na aldeia embotara e remetera para os cantos mais escondidos do cérebro.

    Sem querer, os meus olhos de menino compraziam-se, os meus ouvidos deliciavam-se de sons evocadores, havia cheiros que avidamente guardava, gestos de que, inconsciente, me apoderava, paladares que só nesses dias de visita me eram oferecidos mas deixavam marcas, beijos de pessoas desconhecidas, simpatias tantas vezes passageiras. Conheci gentes que nunca mais manifestaram lembrança de mim, embora as visse posteriormente em inúmeras ocasiões.

    A princípio ocasionais, na companhia do meu pai, entre mim e a cidade estabeleceram-se laços cada vez mais íntimos a partir do tempo em que, como estudante, ali passei a residir. Mais tarde vivi-a profissionalmente e nela habitei por alguns anos nos primeiros tempos de casado. Não sei se lhe posso chamar “a minha cidade” mas foi, com certeza, a que guardou as mais caras recordações da minha infância e da minha adolescência.

    O Doutor Rodrigues fazia parte do quadro honorífico da urbe. Era frequente vê-lo, elegantemente vestido em tons escuros, chapéu eclesiástico de aba elíptica debruada a cetim negro, em deambulações solitárias na Praça da Sé, distribuindo cumprimentos a todos os conhecidos, que eram muitos.

    Ilustração: RUI LAIGINHA
    Ilustração: RUI LAIGINHA

    TOTAL

    CONFUSÃO

    «Ainda é nosso parente!» – dizia o meu pai, enunciando os ramos genealógicos que fundamentavam a declaração. Provinha de uma família conceituada de lavradores, conscientes do valor da cultura, num tempo em que tal era extremamente raro. Um seu irmão era licenciado em engenharia.

    Foi, durante muitos anos, professor efectivo do Liceu Nacional de Bragança. Licenciado em Filologia Germânica, conhecedor profundo da língua inglesa, que ensinava, tinha como interlocutor privilegiado o Bispo D. Abílio que governara a diocese de Cochim, na Índia, antes de lhe ser outorgado o báculo de Bragança e Miranda do Douro. Dizia-se que mantinham longas conversas no idioma de Shakespeare sobre variados temas, em virtude da profunda cultura que um e outro possuíam.

    Atingido por doença do foro psiquiátrico, permaneceu ainda por algum tempo a exercer a docência. Numa época em que imperava a disciplina nas escolas, muito se disse sobre o ambiente que se estabeleceu nas turmas por ele leccionadas. A irreverência juvenil irrompeu sem peias nas suas aulas. Na sala reinava total confusão: os alunos entravam e saíam enquanto ele, imperturbável, debitava os seus conhecimentos e fazia perguntas ao vento. O Reitor, em tempo oportuno, comunicara às entidades competentes a delicadeza da situação, mas não obtivera nenhum resultado. Procurava preservar a respeitabilidade do mestre e os superiores interesses dos alunos num equilíbrio assaz difícil de manter. Tantas vezes chegavam ao seu gabinete indícios óbvios de desordem que era obrigado a deslocar-se à sala donde provinham e, pretextando uma qualquer informação aos alunos, identificar os mais “activos” e convocá-los para uma conversa particular. Dera aos contínuos ordens expressas para recambiarem de imediato os alunos que circulassem nos corredores, o que não estancava a constante sangria determinada pela irrequietude dos jovens e a inconsciente permissividade do professor.

    Certa ocasião, dois alunos postaram-se atrás da porta à espera de um companheiro que tinha saído. Seguravam o cesto dos papéis e, à aproximação de alguém, aplicaram-lhe uma chapelada. Para seu desagrado e gáudio dos colegas, a vítima era o Reitor, homem de baixa estatura e de nervos à flor da pele. É claro que os autores da proeza levaram que contar.

    Uma vez aposentado, o Doutor Rodrigues via-se com mais frequência a passear na Praça da Sé. Entretinha com alguém invisível permanente diálogo. De quando em vez, puxava de um espelho de bolso e alisava a sua longa barba negra matizada de branco. Apesar disso, nem sequer os miúdos ousavam fazer dele motivo das suas brincadeiras.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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