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    Arquivo: Edição de 31-05-2020

    SECÇÃO: Local


    GENTE DA NOSSA TERRA

    António Lourenço: a mítica figura do FC Porto que em Ermesinde animou a quarentena dos vizinhos com o seu inseparável trompete

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    Um pouco por todo o Mundo foram muitos os criativos que das varandas, janelas, ou telhados das suas casas animaram - ou ainda animam - os vizinhos durante o período de isolamento social “imposto” pela Covid-19. E apesar de maio ter sido um mês de um gradual desconfinamento após o término do Estado de Emergência - que vigorou no nosso país de 18 de março a 2 de maio -, em que as restrições para travar a disseminação do vírus foram sendo levantadas aos poucos, ainda é fundamental ficar em casa, sempre que possível, para combater este inimigo comum que é o novo coronavírus.

    E em Ermesinde esse cenário - de animar a malta que está em casa à espera de tempos melhores - também se vai vendo “aqui e ali”. Um desses animadores é uma figura mítica dos recintos desportivos nacionais, alguém que pelo seu incondicional apoio e eterno amor ao Futebol Clube do Porto já garantiu um lugar na história deste clube. Há 46 anos (consecutivos) que vive em Ermesinde, e chama-se António Lourenço, o célebre trompetista que há quase quatro décadas a esta parte anima os jogos do “seu” Porto, alguém que capta a atenção e empolga milhares de adeptos que estão à sua volta nos estádios e pavilhões, e alguém que da varanda, ou da janela, da sua casa tem em tempos de confinamento domiciliário animado diariamente a vizinhança com o som do seu inconfundível e mítico trompete. Estivemos à conversa com ele, uma longa e interessante conversa que dava para encher metade deste jornal, tal como o próprio nos confessou em tom de brincadeira no final da entrevista, mas como o espaço é limitado... aqui ficam algumas passagens desta agradável troca de palavras com um dos mais icónicos, a nível nacional e internacional, adeptos portistas.

    MÚSICA, DESPORTO E IMPRENSA

    Portuense de gema, nasceu na freguesia da Sé, há 82 anos, tem uma vida dedicada à música, ao desporto e à imprensa. Começando pela música, conta-nos que esta é uma ligação com mais de 60 anos. «Comecei a tocar aos 15 anos na Banda da Foz do Douro», onde iniciou uma “ligação” ao trompete que perdura até aos dias de hoje. Depois disso, seguiram-se seis décadas a tocar em diversas (outras) bandas de música, inclusive a Banda de Alfena, na qual começou a tocar quando casou e veio viver para Ermesinde, onde esteve cinco anos antes de se mudar para Rio Tinto. Continuemos nas bandas de música, pelas quais o nosso entrevistado passeou com classe o seu trompete ao longo dos tais mais de 60 anos. Entre outras, ficaram-nos gravadas na memória a Banda de Guifões, a Banda de Fafe, a Banda de Famalicão, a Banda de Rio de Moinhos, ou a Banda de Rio Tinto, a última em que tocou. Em todas elas se destacou. Aliás, a música é algo que lhe vem desde os tempos de “gaiato”, já que o seu pai era fadista amador, «cantava o fado aos fins-de-semana na antiga feira popular, no Palácio de Cristal, e lá ganhava algum dinheiro, pois tinha 5 filhos (para sustentar)».

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    Ainda no plano musical diz-nos com orgulho que aos 43 anos cumpriu o sonho de entrar para o Conservatório de Música do Porto. «Inscrevi-me lá e fui fazer exames de admissão e entrei. Andei no conservatório durante 10 anos a estudar na condição de trabalhador-estudante. Fiz os cursos de composição, acústica, História da Música, Educação Musical, trompete, e sempre com notas altas, sempre com notas superiores a 15 valores». Por esta altura, já António Lourenço tinha passado o bichinho da música, e do trompete em concreto, aos seus filhos, que tiveram o pai como mestre e o acompanharam em várias das bandas musicais pelas quais passou. Aliás, o seu filho mais novo, que também cursou no Conservatório do Porto, depois foi para a Escola Superior de Música onde tirou um curso, «e tornou-se um trompetista do “outro mundo”, e olhe que eu conheço grandes trompetistas a nível mundial», diz orgulhosamente, dizendo-nos que o seu rebento mais novo atua muitas vezes com orquestras na Casa da Música, por exemplo.

    Profissionalmente, António Lourenço esteve a maior da sua vida ao serviço do histórico - e hoje extinto - jornal “O Comércio do Porto”, onde foi compositor mecânico. Aliás, o popular Comércio é digamos que um jornal familiar para António, já que também o seu pai lá trabalhou, como chefe da distribuição, para além de muitos outros familiares seus que trabalharam - exercendo funções várias - no Comércio do Porto.

    O nosso entrevistado trabalhou neste jornal durante cerca de 30 anos, em dois períodos distintos, o primeiro antes de ir para Angola e o segundo depois de regressar a casa. Em Angola, onde esteve durante 7 anos, António Lourenço viveu em Luanda, tendo aí trabalhado - como compositor mecânico - em prestigiados órgãos de comunicação angolanos, como a revista Notícia, e nos diários ABC, Província de Angola, e O Comércio. Mesmo longe de casa a música nunca o largou e também tocou numa orquestra em Luanda. Regressou a Portugal, ou à metrópole como se designava na altura este “retângulo à beira mar plantado”, um mês antes do 25 de Abril de 1974, e veio viver para Ermesinde de onde nunca mais saiu até hoje. Já lá vão 46 anos. No regresso, trabalhou no Jornal de Famalicão algum tempo, voltando depois a casa, isto é, ao Comércio do Porto, onde chegou a ser chefe da comissão de trabalhadores, conhecendo alguns notáveis jornalistas nortenhos que por lá passaram, recordando nomes como Júlio Magalhães, Bernardino Barros, ou Manuel Queirós. «Conheci centenas de jornalistas ao longo da vida». Inclusive, o nosso entrevistado também teve uma incursão na escrita, tendo para além do seu Comércio do Porto, escrito para outros jornais por onde passou. António Lourenço é ademais um profundo conhecedor do Porto, cidade, ressalvando o facto de já ter colaborado (com informações e histórias que poucos conhecem), por exemplo, em diversos livros do investigador/escritor portuense Hélder Pacheco, de quem é amigo. António Lourenço está reformado já lá vão 17 anos.

    O INÍCIO DA LIGAÇÃO COM O FC PORTO

    ATRAVÉS DE UM ERMESINDENSE

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    Mudemos de assunto. Como é que surge o FC Porto na sua vida? Tudo começou aos 14 anos, nas praias fluviais do Rio Douro, para onde o pai de António (que à noite trabalhava no Comércio), levava durante o dia os seus 5 filhos. Uma dessas praias era a do Senhor do Além, onde treinava a natação do Salgueiros e do Fluvial. Mais acima, na Praia do Aurélio, treinava o FC Porto. António recorda que uma das primeiras coisas que o seu pai fez foi ensinar os seus filhos a nadar, tendo o nosso entrevistado começado a progredir na natação, de tal modo que certo dia o então Diretor de natação do FC Porto, Joaquim Lagoa, um ilustre ermesindense e que foi, aliás, um dos fundadores do CPN, falou com o pai de António para que o rapaz fosse representar o emblema portista na natação. Convite aceite. A partir de então, e até por volta dos 18, 19 anos, António destacou-se como nadador do FC Porto, mas não se ficou por aqui no plano desportivo. «Depois, fui jogar basquetebol, no Campo da Constituição, onde cheguei a jogar pelos juniores do FC Porto. Fiz também ginástica ao serviço do clube, cujo ginásio ficava na zona das Fontainhas, e ainda pratiquei remo no Sport Clube do Porto», e sempre, segundo nos confidencia, com reconhecidos méritos e títulos. Também na tropa tem a caderneta cheia de louvores. No Regimento de Cavalaria 6, onde foi eleito o melhor soldado da recruta de 1958, foi, mais tarde, convidado pelos oficiais para formar e treinar a equipa de basquetebol do regimento, que se sagraria campeã nacional militar. Conduziu ainda as equipas de voleibol e de natação do regimento a diversos títulos regionais.

    Mas e o trompete, quando passou a ser uma imagem de marca dos jogos dos Dragões?

    Este capítulo remonta a 1983 (a este propósito abre um parêntese para frisar que Jorge Nuno Pinto da Costa assumiu pela primeira vez a presidência dos azuis e brancos em 1982) na antecâmara de um decisivo FC Porto - Benfica, em hóquei em patins. Uma vitória valia o primeiro título nacional desta modalidade para os portistas. «Sim, porque antes os clubes de Lisboa mandavam em tudo, fosse no basket, andebol, voleibol, ou hóquei. Nenhum clube do norte ganhava nada, a não ser no hóquei em campo, algumas vezes no ciclismo e pouco mais», lembra. O jogo começou com uma hora de atraso, pois o antigo Pavilhão Américo de Sá, com capacidade para 6000 pessoas devia ter nesse dia umas 10.000 almas! Toda a gente de pé! António recorda que foi nesse dia que levou pela primeira vez o trompete para um jogo, acompanhado de um dos seus filhos. O resultado de 3-1 a favor dos portistas acabou com a hegemonia dos lisboetas no hóquei em patins e garantiu que pela primeira vez o título desta modalidade ficasse no norte.

    A partir daí nunca mais deixou de se ouvir o trompete de António Lourenço num jogo do FC Porto, fosse futebol, hóquei em patins, voleibol, basquetebol, andebol, ou qualquer outra modalidade do clube. António passou a fazer parte da recém fundada claque “Dragões Azuis”, «que tinha muita malta de Ermesinde, como o Armando da estação de serviço, ou o Dr. Resende. Foi então que comecei a andar com o FC Porto para todo o lado, em Portugal e no estrangeiro», e sempre munido do inseparável trompete para animar as bancadas (e a equipa, claro) em dia de jogo.

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    As memórias são milhares, ao longo destes quase 40 anos de apoio, embora hoje em dia praticamente só vá aos jogos realizados em casa, pois nos jogos fora de portas... com as claques, com os apertos, a polícia, etc., «já não tenho paciência para isso», diz. Mas voltando às memórias, Viena, por exemplo, é uma delas, na noite em que o FC Porto foi pela primeira vez campeão europeu. Recorda o calcanhar de Madjer nessa épica noite de Viena, onde esteve com o seu trompete, como um dos melhores momentos que viveu enquanto adepto/apoiante do clube. Também o golo de Madjer, na final da Taça Intercontinental de 1987 lhe está na memória. «Foi um jogo dramático, jogado na neve, com a bola (que deu origem ao golo da vitória) a entrar devagarinho na baliza. Um momento de muita emoção, talvez o momento mais emocionante para mim».

    Mas nem só de futebol se faz a ligação de António ao FC Porto. «Eu vou sempre ao pavilhão ver outras modalidades. Se houver um jogo em que eu não apareça as pessoas telefonam-me logo a perguntar se está tudo bem? Estou lá sempre», diz António que já leva quase 60 anos enquanto sócio do FC Porto. Naturalmente que ele está, por direito próprio, na História do clube, e neste momento tem uma estátua sua no museu dos portistas, «com um trompete mesmo a sério. Claro que para mim isso é um orgulho». E se à estátua (em tamanho real) no museu do clube juntarmos as frequentes entrevistas que concede a jornais, revistas, ou estações de televisão sempre que o tema é “FC Porto” é ainda mais inquestionável que estamos perante alguém que faz, para todo o sempre, parte da História do clube.

    TROMPETE ANIMADOR EM TEMPOS DE COVID-19

    Falemos agora de coisas mais sérias, do confinamento a que a Covid-19 a todos nos obrigou. «É um período difícil, mas temos de procurar vivê-lo o melhor possível, sem, no entanto, entrar em pânico. Uma coisa é ter cuidado, outra coisa é ver pessoas com medo de ir até ao hospital (tratar seja do que for) com receio de apanhar o vírus. Claro que é preciso ter cuidado, seguir à risca o que nos é recomendado, temos de ser responsáveis, e eu tenho cumprido essas recomendações, mas tento manter o espírito positivo de que isto vai acabar».

    E nesta altura em que estar em casa, sempre que possível, continua a ser fundamental para fintar o vírus, o trompete de António tem animado a vizinhança da sua rua, embora em meados de abril houvesse alguém que ao que parece não gostou muito da “música” e tivesse feito queixa à PSP. Uma queixa que, aliás, gerou indignação na vizinhança, dada a admiração e estima que o nosso entrevistado granjeia.

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    Mas vamos por partes. A ideia de sair à varanda, ou janela, da sua casa para combater a angústia coletiva vivida face ao isolamento social recomendado pelas autoridades começou em março. «Quando comecei a ver as reportagens na televisão, em Itália, Espanha, e mesmo aqui em Portugal, em que à noite as pessoas vinham cantar à janela, pensei: porque não fazer isso aqui também? Eu em casa toco todos os dias, digamos que é um treino, para manter a forma. E vai daí, resolvi tocar o trompete duas vezes por dia, durante 15 minutos cada uma delas, uma às 13H00 e outra às 17H00», um horário que está dentro do que é permitido por lei, «horas convenientes, precisamente para não incomodar ninguém. Já vivo aqui há 46 anos e nunca tive problemas com os vizinhos», frisa. Terá sido algum benfiquista a fazer queixa, pergunta em tom de brincadeira o autor destas linhas. «Não sei, só se for algum que veio para aí morar há pouco tempo, pois há aqui alguns benfiquistas na rua, mas são pessoas antigas, com as quais me dou bem e nunca tive qualquer problema. São boas pessoas. Inclusive, ainda há dias toquei os parabéns pelo telefone a uma senhora que é benfiquista a pedido do filho dela».

    A iniciativa de animar, ou alegrar, o povo em tempo de quarentena foi um sucesso, segundo nos diz, «foi um piadão, as pessoas acharam a ideia formidável e todos os dias havia muita gente nas varandas que me acompanhava». O rol de músicas era diversificado, não só músicas de estádio, digamos assim, de um modo geral António tocava, sobretudo, música popular portuguesa, como o Malhão, ou o Bailinho da Madeira, «embora alguns portistas, de vez em quando, me peçam para tocar a música do Pinto da Costa», conta. Numa dessas “serenatas” à varanda teve inclusive a visita de alguns elementos da claque dos Super Dragões, onde se incluía o líder (da claque) Fernando Madureira, que ali foram homenagear o Sr. Lourenço, como é popularmente conhecido nos estádios nacionais e internacionais. E de repente, alguém fez queixa desta animada rotina diária.

    «Não sei quem foi, nem vou andar a pesquisar, toda a vida toquei e nunca tive problemas com vizinhos. E mesmo estando dentro do que é permitido por lei (do ruído), das 08H00 às 22H00, nunca toquei antes das 11H00, sempre depois. E a polícia quando veio a minha casa não me mandou parar, porque eu não estava a infringir a lei, só me vieram alertar, ou dar conhecimento, que alguém tinha feito uma queixa». Por isso, continua a tocar o seu trompete depois desse episódio e a animar o povo da sua rua da mesma forma entusiástica com que vem animando os jogos do seu FC Porto de há quase quatro décadas a esta parte.

    Por: Miguel Barros

     

     

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