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    Arquivo: Edição de 31-03-2018

    SECÇÃO: Crónicas


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    Cada qual escolhe o seu caminho

    A rota do Atlântico Sul mantinha-se prioritária para os portugueses que buscavam lá fora o que no seu país escasseava. Estávamos no fim dos anos cinquenta do século passado e o cais da Praça Mauá no Rio de Janeiro fervilhava de gente da "santa terrinha" que vinha receber familiares e amigos prestes a desembarcar. Chegavam, com regularidade, levas de "patrícios", em navios da Companhia Nacional de Navegação, da Royal Mail ou da Linea C, já não à procura da "árvore das patacas" mas de uma vida digna que a Pátria lhes recusava. Além de portugueses, vinham também espanhóis e italianos com os mesmos intentos. Originários de aldeias das regiões mais deprimidas dos respetivos países (Trás-os-Montes e Beiras para os lusos, Galiza e Astúrias para os espanhóis, Calábria para os italianos) eram portadores de "carta de chamada", espécie de compromisso de trabalho e/ou de apoio de um parente ou amigo já instalado no Rio ou em S. Paulo e eram estes que também diligenciavam instalação para os primeiros tempos e trabalho em estabelecimentos próprios ou de alguém mais chegado por parentesco ou origem. Sim, porque, como dizia o brasileiro comum, não sem forte dose de inveja, os portugueses chegavam de tamancos (1)e, num curto espaço temporal, já possuíam o próprio negócio (2)via de regra no ramo alimentar: café e bar, restaurante, açougue, padaria, confeitaria ou similar, ao contrário dos migrantes nacionais provindos do Nordeste que chegavam nos famosos "paus de arara" (3) sem apoio de familiares ou de amigos residentes no Rio ou em S.Paulo quase tão desprovidos de meios quanto eles.

    Com efeito, constituía motivo de admiração a rápida passagem dos portugueses da condição de empregados ao estatuto de patrões. Habituados a uma vida frugal nas aldeias de origem, poupavam quanto lhes era possível e abdicavam de gastos além do estritamente necessário (4). Um, dois, três, quatro anos de aforro, insuficientes ainda para partilhar um negócio, tempo de sair à procura de patrício abonado e das suas relações que mostrasse disponibilidade para lhes emprestar dinheiro a juros comedidos. Bancos não entravam nessa equação, tudo se resolvia na base da confiança pessoal e/ou no lastro de velhas amizades de família. Esforço, perseverança, seriedade, coragem e solidariedade caracterizavam o tradicional emigrante português e despertavam, como ficou dito, se não a inveja e/ou a admiração, a impossibilidade frustrante de imitá-los. Apesar disso, importa dizer que o cordial relacionamento entre portugueses e brasileiros jamais esteve em causa não obstante o preconceito histórico consubstanciado nas famosas "anedotas de português" (5).

    Ora, se o comércio era o destino mais comum dos emigrantes portugueses, casos havia que contrariavam essa regra. Conheci vários desses casos durante a minha permanência no Rio de Janeiro:

    Houve um período (1958) em que trabalhei no escritório da Mesbla (6) onde tive por colega o lisboeta Jaime Luís Simões. Morava no bairro das Laranjeiras e, contrariando a regra quase geral dos portugueses, não torcia pelo Vasco da Gama mas pelo Fluminense, clube de gente bem carioca. Foi breve a nossa convivência mas ainda tivemos a oportunidade de assistir, lado a lado, a um Fluminense x Vasco no bairro onde ele residia. Qual não foi a minha surpresa quando, algum tempo depois, o vi na Tv. Globo terçando argumentos com João Saldanha, técnico do Botafogo e da seleção brasileira, e Nelson Rodrigues, "o anjo pornográfico", famoso dramaturgo e cronista desportivo do "Jornal dos Esportes" (7). Soube, então, que o Jaime Luís era correspondente, no Brasil, de um jornal desportivo português. Não foi, porém, uma aparição episódica porque, dali em diante, assisti a vários desses programas e, quando já me encontrava, de novo, em Portugal, tive oportunidade de ler alguns dos seus trabalhos no citado jornal. É possível que a participação televisiva com tão ilustres colegas lhe tivesse aberto outras vias de realização profissional.

    Uma vez concluído o 7º ano do Liceu, o Júlio Rodrigues seguira com o pai para S. Paulo submetendo-se a Exame de Adaptação dos estudos realizados em Portugal e ingressando, de seguida, numa unidade universitária daquela cidade onde se licenciou em História. Tornámo-nos amigos quando já ensinávamos em Bragança, ele no Liceu, eu no já extinto Colégio de S. João de Brito apresentados que fôramos por um amigo comum. Ambos tínhamos trabalhado com nossos pais, ele numa confeitaria no bairro do Brás na capital paulista, eu em estabelecimentos de café, bar e restaurante de que o meu pai foi sócio no Rio de Janeiro e, simultaneamente, obtivéramos os nossos cursos universitários.

    Em contrapartida, outros tinham interrompido os estudos em Portugal para acompanharem os seus pais na emigração. Foi este o caso do João, do Alexandre e da Maria Angélica que frequentavam o Liceu Nacional em Bragança onde os pais eram caseiros agrícolas numa quinta próxima. Eram bons alunos e haviam concluído, respetivamente, o oitavo, o sexto e o quarto ano daquele estabelecimento de ensino, porém a perspetiva de uma vida mais folgada para toda a família determinou aquela decisão. Pais e filhos lutaram com denodo, lado a lado, e foram bem-sucedidos.

    Quaisquer que fossem as circunstâncias que determinavam o caminho a percorrer, os portugueses correspondiam às qualidades que a sua História bem atesta.

    (1) "…chegavam de tamancos…" - os tamancos representavam a origem aldeã e a condição humilde que levava os emigrantes portugueses ao Brasil.

    (2) "…o próprio negócio…" - este era o objetivo que norteava os nossos emigrantes embora não tivessem qualquer tradição ou prática comercial.

    (3) "…paus-de-arara…" - os retirantes dos Estados do Nordeste brasileiro, flagelados pelas prolongadas secas ou por grande falta de recursos, eram transportados nas caixas de camiões, apoiados em varões dispostos longitudinalmente como se fossem araras pousadas nos seus galhos. A arara é uma ave de grande porte da família a que pertencem os papagaios.

    (4) "…abdicavam de gastos além do estritamente necessário." - Tal expressão não significa que os portugueses emigrados no Brasil cortassem na alimentação ou nos bens essenciais mas tão só em gastos supérfluos.

    (5) As anedotas de português procuravam mostrar ignorância ou estupidez e incluíam sempre os nomes considerados mais comuns entre os portugueses: Manuel e Joaquim. É o tipo de anedota que, em Portugal, corresponde aos alentejanos.

    (6) Mesbla - Era uma grande empresa internacional que, segundo a publicidade, vendia desde alfinetes a aviões. O nome era originário dos primitivos sócios franceses "Mestre et Blatgé".

    (7) "Jornal dos Esportes" - Era o principal jornal desportivo brasileiro onde o grande dramaturgo Nelson Rodrigues escrevia as suas mais famosas crónicas. Como é sabido, os brasileiros usam o significante "esporte" (tradução local de "sport"- desporto). O nome do jornal corresponde, pois, a Jornal dos Desportos. Nelson Rodrigues usava nas suas obras dramáticos conteúdos considerados pornográficos. Neste momento, está presente em livrarias portugueses uma obra sobre ele intitulada "Nelson Rodrigues, o Anjo Pornográfico"

    Por: Nuno Afonso

     

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