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    Arquivo: Edição de 20-11-2017

    SECÇÃO: História


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    A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL TEM CEM ANOS (30)

    O soldado do CEP que foi condenado e fuzilado em 1917

    O expedicionário português que foi executado em meados de setembro de 1917, em França, tinha embarcado em Lisboa, seis meses antes, isto é no dia 16 de março de 1917. A recusa em cumprir uma pena de prisão correcional com que foi punido fê-lo desejar passar-se para o lado inimigo, convencido de que iria encontrar um antigo alemão (nem mais nem menos que um dos bisavôs do atual presidente da câmara portuense) para quem trabalhara no Porto, sua terra natal. Afinal acabou fuzilado, acusado de atraiçoar a pátria que devia defender.

    Há cem anos a imprensa portuguesa noticiava a execução de um soldado português na Frente de combate, por motivo de traição à Pátria, sem, no entanto, o identificar, nem referir a data da ocorrência. A notícia que transcrevemos foi publicada no jornal "República" de António José de Almeida, de 3 de outubro de 1917.

    "No sector português / O fuzilamento / reconstituição do facto / Em jornal da noite referia ontem o seguinte: Teem aparecido varias versões acerca do julgamento e execução do soldado chauffeur, fuzilado na frente portuguesa. Informações fidedignas permitem-nos restabelecer com exactidão o modo como os factos se passaram. / Esse soldado fôra condenado a 30 dias de prisão motivada por ter faltado com o automóvel a seu cargo numa ocasião em que esta era necessário, para um serviço urgente.

    As penas de prisão cumprem-se na primeira linha, pelo que o chauffeur foi conduzido para ai; durante o tempo de prisão o detido levantou as suspeitas dos soldados por causa das muitas preguntas que lhes dirigia, procurando informar-se de qual o dispositivo das forças e principalmente das aberturas do arame farpado.

    Comunicadas as suspeitas aos oficiais, passou o detido a ser vigiado de perto, confirmando a sua atitude de constante investigação as duvidas já suscitadas acerca das suas intenções.

    Apanhado de surpreza, foi-lhe encontrado um papel em que vinham indicados as posições das aberturas, elemento da maior importancia para facilitar a penetração do inimigo nas nossas trincheiras.

    Este documento foi o corpo de delito do processo que logo se lhe instaurou, e de que resultou a sua condenação á morte.

    O reu recorreu da sentença nos termos legais, que de resto foi confirmada, razão porque medeou cerca de um mez entre a condenação e a execução.

    Felizmente, foi este o único caso em que um português, dos sessenta mil que tão valorosamente se batem, se esqueceu do que devia á sua patria, aos seus companheiros e a si mesmo.

    O nefando crime, devidamente castigado com a unica pena admissivel em tais casos, certamente se não repetirá, tanto mais que a policia militar inglesa está tão bem organizada, que dificilmente os traidores podem chegar a consumar os seus infames desígnios. (…)"

    Sabe-se que o referido combatente era João Augusto Ferreira de Almeida, tinha 23 anos (feitos já em território francês, no dia 3 de abril) e era natural do Porto (Lordelo do Ouro). Era filho de João Ferreira de Almeida e Angelina Augusto. Em tempos, no Porto, João de Almeida teria sido chofer de um alemão chamado Adolfo Hofle, radicado na cidade do Porto, que foi bisavô do atual presidente da Câmara, Rui Moreira. Esse alemão estimava-o tão bem que lhe terá dado vontade de se passar para o lado alemão na esperança do encontrar.

    No seu boletim do CEP conta que foi punido uma primeira vez, no dia "22/7/917 com 60 dias de prisão correcional, porque sendo chaufeur do carro automóvel de agua em serviço na ambulância 5, se ausentou sem autorização, com o mesmo carro, em 8 do corrente, pelas 13h 30m, regressando no dia 9 pelas 15 horas, do que resultou sencivel prejuizo para o serviço d'abastecimento de água a uma unidade, tendo depois declarado que fora a Wavrans onde se juntára com o mecanico n.º 577 e o chauffeur n.º 501 da secção do C.A. que ali estaciona, o que se provou ser falso; e ainda porque tendo-lhe sido determinado, em 12 de julho, pelo comandante de um grupo de companhias de infantaria 1, que deslocasse o referido carro de um local para o outro, por prejudicar o serviço do bivaque, respondeu com modos pouco respeitosos e declarando na frente das praças das mesmas companhias, que faria ver ao Snr. Chefe do Estado Maior a inconveniencia das ordens que lhe eram dadas, infringindo assim os deveres n.os 1.º, 2.º, 4.º, 5.º, 24.º e 43.º do art.º 4.º do R.D.E."

    1ª PÁGINA DO BOLETIM DA CEP DE JOÃO AUGUSTO FERREIRA DE ALMEIDA
    1ª PÁGINA DO BOLETIM DA CEP DE JOÃO AUGUSTO FERREIRA DE ALMEIDA
    Os seus camaradas (sete soldados e dois sargentos) declararam, como testemunhas, que o acusado não pretendia cumprir a punição que lhe tinha sido aplicada, evidenciando antes a intenção de fugir para o lado dos alemães. E, ainda no mês de julho, para concretizar o seu propósito, se teria dado ao trabalho de investigar a forma de chegar à parte onde se encontrava o inimigo, não escondendo as suas intenções em desertar e de levar informações ao exército alemão.

    O Tribunal de Guerra do Corpo Expedicionário Português, a quem competiu julgar este caso, era presidido pelo coronel de Infantaria António Luís Serrão de Carvalho e teve como juiz auditor Joaquim de Aguiar Pimenta Carreira. Houve um júri que era constituído por um major, dois capitães e dois alferes. O referido Tribunal de Guerra reuniu-se a 15 de agosto tendo decidido condenar à morte Ferreira de Almeida. A defesa ainda recorreu da sentença, mas o melhor que conseguiu foi a anulação do julgamento e a marcação de um novo para o dia 12 de setembro seguinte.

    Concretamente, o soldado condutor Ferreira de Almeida era acusado de ter cometido os seguintes factos criminosos:

    "1.º - Tentara passar para o inimigo, para o que perguntara a várias praças o caminho a seguir, chegando até a oferecer dinheiro com o fim de obter essa informação.

    2.º - Quereria indicar ao inimigo os locais ocupados pelas tropas portuguesas, constando em duas cartas itinerárias de que a praça era portadora."

    Na sequência da acusação, o Juiz auditor ditou os seguintes quesitos:

    "1.º - O facto de o arguido em 29 de julho, encontrando-se na primeira linha, tentar passar para o inimigo perguntando a várias praças o caminho, oferecendo a uma dinheiro para que lhe prestasse essa informação;

    2.º - O facto de o arguido querer indicar ao inimigo os locais ocupados pelas tropas portuguesas, constantes de duas cartas itinerárias de que era portador;

    3.º - O mau comportamento do réu;

    4.º - O crime ser cometido em tempo de guerra;

    5.º - O réu ter cometido o crime com premeditação;

    6.º - O crime ter sido cometido, tendo o agente a obrigação especial de o não cometer;

    7.º - O estar ou não provado o imperfeito conhecimento do mal do crime."

    O júri provou, por unanimidade, os 3.º e 4.º quesitos; o 2.º não foi provado por unanimidade; o 1.º, 5.º e 6.º foram provados por maioria; e o 7.º não foi provado por maioria.

    Na sequência deste julgamento, João Ferreira de Almeida seria executado às 7h45m do dia 16 de setembro de 1917, por um pelotão de fuzilamento, conforme determinado, poucos dias antes, pelo Tribunal de Guerra.

    Um camarada de armas refere-se assim ao momento derradeiro: "De súbito um automóvel que chega, ao mesmo tempo que um frio de pena paira sobre serranos portugueses. Do auto desce um rapaz ainda novo, vinte e dois anos, talvez. Enverga o fardamento de chauffeur, dólman de oficial e calção à chantilly. Acompanha-o um capelão militar. É o condenado. Ao descer, encara com uma espécie de terror a força armada que o rodeia e, no seu olhar triste, há qualquer coisa de angústia pungente".

    Naquela manhã de 16 de setembro de 1917 onze homens, comandados pelo major Horácio Severo de Morais Ferreira, constituíam o pelotão de fuzilamento que executou Ferreira de Almeida, de olhos vendados. A execução decorreu no lugar de Picantin, próximo de Laventie, região de Pas de Calais, não muito longe da cidade de Lille. Ferreira de Almeida foi sepultado no Cemitério de Guerra nesse local, mais tarde, contudo, o seu corpo seria trasladado para o cemitério português de Richebourg (covão 19 da fila 6, no talhão B) onde se encontram mais 1830 antigos expedicionários portugueses que a Guerra matou.

    Por: Manuel Augusto Dias

     

     

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