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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 31-07-2017

    SECÇÃO: Crónicas


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    Escrita: a arte de marear

    Navego na escrita qual marujo de água doce com aspirações a nauta de longo curso. Dizem-me que essa é regra comum. Talvez seja, porém as generalizações são quase sempre enganosas. Outras fossem as marés e, com certeza, havia de chegar sem sobressaltos a porto seguro. A vida não permitiu, os ventos não ajudaram e não bastam o empenho e a determinação de quem a tal se propõe.

    "Navigare necesse; vivere non est necesse" frase atribuída ao general Pompeu (ano 70 d.C.) para incutir coragem aos marinheiros sob o seu comando que deveriam transportar cereais da Sicília para Roma,mas recusavam fazer a viagem com medo dos piratas que infestavam as águas do Mediterrâneo. Esse transporte constituía necessidade premente para salvar da morte grande parte da população da Capital do Império nem que para tal os remadores houvessem que perder a própria vida. Roma era mais do que uma grande cidade, mais do que a sede do poder político, era o símbolo de um mundo em iminente perigo. Muito mais tarde, já no século XIV da nossa era, os mesmos significantes teriam para Francesco Petrarca outro significado: "navegar é preciso; viver não é preciso "enfatizava. "Quero para mim o espírito dessa frase" - escreveu Fernando Pessoa. Não admira que ela tenha sido utilizada por esses dois enormes vultos da Literatura, e que excecionais cultores de outros géneros artísticos da lusofonia também dela se tivessem servido para exprimir a sua ligação aos antepassados navegadores tais como Chico Buarque e Caetano Veloso, esses geniais "Argonautas" da atualidade.

    Esta é, pois, uma daquelas frases que vêm fazendo história ao longo de séculos, de milénios, desde logo pela forma antitética, sentido paradoxal e denso de conotações mas também pela origem histórica que lhe é atribuída e pela valia de autores de exceção que a fizeram sua. Porque é, antes de mais, de interpretação que se trata, de ler para além da aparência formal meramente denotativa. Pompeu, militar e político, talvez pretendesse valorizar o ato patriótico em desproveito da vida dos seus executantes e a frase corresponderia ao que o povo quer significar com a expressão "morra o homem, fique a fama!"ainda que, nesse episódio, como sempre acontece, a História não tivesse guardado os nomes dos verdadeiros heróis, os marinheiros, mas do homem sob cujas ordens atuaram. Diz-se que Petrarca utilizou a expressão mas desconhece-se onde, quando e em que sentido o fez. Intelectual pré-renascentista, precursor do Humanismo e um dos maiores nomes da poesia de todos os tempos - foi o introdutor de uma nova forma poética, o soneto, que veio a tornar-se a mais cultivada e duradoura de toda a história literária - tê-la-á transfigurado num sentido lírico universalista. Fernando Pessoa conformou o sentido da frase à criação artística e humana para engrandecimento da Pátria. Cada um a seu modo teve como objetivo algo para além dele, uma missão afetiva mas plural, um ser coletivo de que ele é somente o rapsodo.

    Navegar é sonhar, criar, ousar, planear, empreender, lutar, realizar; é enfrentar tempestades ou calmarias para alcançar o bem desejado como fizeram os navegadores portugueses de quatrocentos e de quinhentos em nome de Deus e do Rei, da Fé e do Império. Quantos tombaram em combate nessa época e em tempos subsequentes em nome da Pátria, em nome da Humanidade, para que subsistissem e se engrandecessem!

    Na casa dos meus avós paternos, além da Sagrada Escritura, provável herança de um tio-bisavô sacerdote, havia um ou dois livros religiosos que o meu avô levava consigo para o campo e lhe ocupava(m) o tempo e a mente nos curtos intervalos de descanso após a merenda e antes do reinício do trabalho Quem o conheceu recorda-o com a enxada ao ombro ou a aguilhada numa das mãos enquanto a outra segurava um livro. Nunca frequentara a escola mas lia fluentemente o que lhe permitia prestar auxílio ao velho cura quando este tinha que ler, do altar, comunicações de teor religioso ou de outra natureza. Nunca havia frequentado a escola, aprendera a ler, escrever e contar com o tio padre sendo a única pessoa da aldeia que escapava ao analfabetismo reinante que, a nível nacional, atingia 90% da população na transição do século XIX para o século XX. Os seus filhos frequentaram a escola primária, nível de ensino que quase todos completaram.

    Quando o meu pai regressou do Brasil após uma estada de seis anos, trazia consigo a esposa, dois filhos e uma pequena biblioteca onde sobressaíam obras conhecidas dos românticos franceses Alexandre Dumas ("O Conde de Monte Cristo") e Victor Hugo ("Os Miseráveis" e "O Corcunda de Notre-Dame"), do espanhol Perez Escrich ("O Manuscrito Materno" e "O Mártir do Gólgota") assim como dos brasileiros Machado de Assis ("D. Casmurro") e José de Alencar ("O Guarani"). Terminado o período das colheitas, chegava o outono, escurecia mais cedo e os serões tornavam-se propícios a entretenimento até à hora de deitar. Mesa levantada, enquanto minha mãe se ocupava na arrumação da cozinha, meu pai ia buscar um dos seus amados livros, sentávamo-nos em nossas banquinhas mais próximos do calor da lareira e ele lia, em voz alta, alguns capítulos. Pela voz de meu pai, conheci todas essas obras que, mais tarde, introduzi nos respetivos contextos. Noutras famílias da aldeia, jogava-se às cartas ou conversava-se para encher as horas recuperando o convívio que, em tempo de trabalho intenso, não fora possível alimentar.

    Atrevo-me, pois, a dizer que nasci com livros e com eles fui crescendo. A passagem pelo Seminário fez aumentar esse meu amor à leitura e à escrita que se estendeu ao culto pelo conhecimento em geral. Sofri um enorme desgosto quando soube que a minha mãe, mal aconselhada por um primo padre, se desfizera daqueles preciosos livros que tanto amávamos atirando-os para dentro do forno numa das habituais cozeduras do pão familiar. Segundo ele, o conteúdo desses livros era moralmente pernicioso porque defendia a vingança, sentimento anticristão, encontravam-se mesmo no Index o que encontrou acolhida no espírito profundamente religioso da minha mãe.

    Quanto a mim, a vida não me permitiu escrever como tanto desejaria. Os comentários dos professores às minhas produções escritas alimentaram o desejo de, um dia, ser escritor mas o trabalho e o estudo protelaram-no e impediram-no. Não fui além das crónicas. E esta é a crónica da minha vida.

    Por: Nuno Afonso

     

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