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    Arquivo: Edição de 31-03-2017

    SECÇÃO: Crónicas


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    Coisas e loisas - Vê, ó literatura, onde poisas!

    Será a crónica como o pardal que só pia, enquanto o romance ou o conto inebriam com seus gorjeios como o tentilhão ou o rouxinol? A Literatura é mais de sentir do que de definir e não é em sede literária que se estabelece a gradação valorativa entre géneros. Tal acontece no jornalismo em que a crónica se inclui num conjunto de formas textuais de que em grande medida diverge. Nela, a conotação sobrepõe-se à simples denotação, a nota subjetiva prevalece por contraste com a objetividade da linguagem de comunicação presente na notícia, na reportagem ou na entrevista. Na crónica, exprime-se um parecer individual, uma visão opinativa, e qualidades estilísticas que lhe conferem beleza e despertam emoções.

    Ressalvo que se trata do que, no presente, entendemos por Crónica não como o termo era empregado em recuadas eras quando correspondia, em termos aproximados, ao que hoje entendemos por História. A palavra crónica deriva do latim "chronica" (chronicus-a-um / no plural, chronica-orum = crónica, narrativa cronológica de factos) com origem no grego "Kronos" (tempo). A crónica histórica, relatando a vida dos soberanos, guerras e outros eventos, tem o seu nascimento assinalado na Babilónia, berço da escrita e daquilo a que chamamos Civilização. Na Europa medieval, religiosos e sacerdotes foram minuciosos cronistas que possibilitaram aos historiadores de épocas seguintes reconstituir a ordem dos reinados e a ligação entre acontecimentos. Escribas a serviço dos reis acompanhavam os feitos da sua gente com a função precípua de os relatar ainda que, nessa narrativa, deixem transparecer o que lhes vai na alma.

    Foi assim que Pero Vaz de Caminha seguiu na expedição de Pedro Álvares Cabral e desse feito deu conhecimento ao Rei D. Manuel na sua Carta. Depois de referir o magnífico quadro que se lhe deparou e as indispensáveis manobras de acostagem e atracação da frota, vai relatando a chegada de homens "pardos, nus sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas" trazendo consigo arcos e setas que depuseram a mando de Nicolau Coelho e sem qualquer indício de animosidade. Vinham "aos dois e aos três" e em pouco tempo "já lá estavam dezoito ou vinte". Gorada a hipótese mais natural de chegarem à fala com esses homens, atiraram-lhes um barrete vermelho num gesto de amizade e "um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas como de papagaio…" Relata, de seguida, todas as movimentações dos portugueses e dos índios nesses primeiros dias de mútua observação, a celebração da primeira missa e a observar os hábitos daquela gente procurando não lhes infundir receio. Na derradeira parte da missiva transmite ao Rei fortes impressões sobre a terra que acabavam de encontrar: "muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos - terra que nos parecia muito extensa". Mas é no parágrafo seguinte que Caminha resume, de forma emotiva e sem perda de objetividade, o enamoramento que dele se apodera e procura transmitir a El-Rei D. Manuel: "Até agora não podemos saber se há ouro ou prata nela ou outra coisa de metal ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares, frescos e temperados como os de Entre Douro e Minho porque neste tempo de agora assim os achávamos como os de lá. As águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!". Além disso, não esquece outro dos principais objetivos da viagem: o alargamento do Cristianismo a novas terras. "Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber acrescentamento da nossa santa fé". O testemunho de Caminha é corroborado por Pedro Calmon na sua História do Brasil (2): "Desde a carta de Caminha em cuja emoção parece murmurar ao vento da manhã a selva iluminada - o deslumbramento da terra primaveril reforça o estilo barroco dos cronistas: inspira-lhes ternura e orgulho". A Carta de Pero Vaz de Caminha é considerada pelos historiadores como a Certidão de Nascimento do Brasil mas é também considerada a primeira obra da Literatura do novo país como atesta Alfredo Bosi na sua "História Concisa da Literatura Brasileira": "O que para a nossa história significou uma autêntica certidão de nascimento, a Carta de Caminha a D. Manuel, dando notícia da terra achada, insere-se em um gênero copiosamente representado durante o século XV em Portugal e Espanha: a literatura de viagens. Assim mesmo: literatura de viagens.

    A crónica continua sendo um género comum ao jornalismo e à literatura sem deixar de ser um para se tornar noutra. Alguém já chamou ao cronista "o poeta dos acontecimentos do dia-a-dia." Quer a crónica seja descritiva, narrativa, dissertiva, humorística, histórica ou lírica, o seu autor utiliza uma linguagem poética e metafórica, mais sentimentalista do que racional. Talvez por isso jornais e revistas não dispensem a presença de quem, não enjeitando os temas que constituem a sua razão de ser, põe a tónica na forma artística como os apresenta ou ilustra. Assim, os escritores mais conhecidos e valorizados pela chamada opinião pública têm ou tiveram a sua coluna num ou em mais do que um órgão de imprensa. Rubem Braga foi o príncipe da crónica brasileira no século XX acompanhado pelo lúcido e divertido Millor Fernandes (quem não se lembra d' "O Amigo da Onça?"). Também Carlos Drummond de Andrade, além de poeta, foi um notável cronista. Em tempos mais recentes, Luís Fernando Veríssimo, Moacir Scliar, Arnaldo Jabor, Carlos Heitor Cony, Pompeu de Toledo sobressaem de um vasto universo. Em Portugal, quase todos os escritores de renome assinam crónicas em jornais e revistas conhecidos: António Lobo Antunes, Clara Ferreira Alves, Gonçalo Manuel Tavares, José Luís Peixoto, Mega Ferreira, Clara Pinto Correia, Ricardo Araújo Pereira e tantos mais. Nem todos os escritores consideram a crónica digna do seu ofício. António Lobo Antunes, provavelmente o melhor escritor português da atualidade, chama às crónicas "prosinhas", "uns textos" "…àquele tipo de prosa", "artiguelhos", "prosa de escriturário", "um objeto chamado Livro de Crónicas" e outros nomes igualmente depreciativos. Todos estes mimos - já tinha havido referências semelhantes em crónicas anteriores - constam da sua crónica, agora semanal, na revista Visão nº 1251 de 23/2 a 1/3 do ano corrente. Promete que dará instruções aos seus editores para que, após a sua morte, não voltem a ser publicadas as crónicas que foi publicando ao longo dos anos.

    Certo é que, nos tempos que correm, a crónica é cada vez mais apreciada e nenhum órgão de comunicação dela prescinde.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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