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    Arquivo: Edição de 30-09-2016

    SECÇÃO: Crónicas


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    Gostar ou não gostar, será essa a questão?

    Gostar é, sem dúvida, um dos conceitos mais usados da nossa língua, quiçá de qualquer língua, seja qual for o signo linguístico que o veicula: gostar, to like, gustar, piacere,aimer, ger ha ben … O gosto está intrinsecamente ligado às nossas emoções, ao nosso relacionamento com o outro e com o meio ambiente, à nossa forma de encarar a vida, aos nossos hábitos e reações perante a realidade que nos cerca e em que nos movemos, atração ou rejeição de algo ou de alguém. O gosto é, pois, variável de pessoa para pessoa segundo a idiossincrasia de cada uma. É um vocábulo assertivo mas pode revelar-se verdadeiro, falsoou assim-assim de acordo com as circunstâncias. Há gostos ou desgostos que dependem de hábitos adquiridos, de apetência/inclinação ou de repulsa que um objeto ou um ser nos provoca, de simples capricho ou mera desconfiança.

    "De gustibus et de coloribus non disputandum" diziam os latinos englobando na mesma expressão o que os seus herdeiros lusos, menos sucintos, distribuem por doisou mais provérbios: "gostos não se discutem" e "se hão houvesse gostos não se gastava o amarelo" que seriam as duas faces da moeda. Existem variantes em cada país falante da nossa língua e, no que a Portugal diz respeito, em cada região e até em cada localidade, umas mais gerais, outras com tonalidades diferenciadas de acordo com as características de cada um(a) deles (delas).

    O João não gostava de caldo de feijões daqueles que o pai semeava na cortinha e a mãe ia recolher para, depois, os meter no pote com água, duas ou três batatas descascadas sem esquecer algumas areias de sal e um regrado cibo (1) de unto (2) às vezes um fio de azeite. Como nunca tinha sentido fome a valer, inscreveu o caldo de feijões na sua lista de rejeições do palato. Jamais tinha tirado verdadeiramente a prova da sua aversão até que, um dia, foi trabalhar em torna-jeira para uns vizinhos que, à hora do jantar (3) lhe puseram à frente, uma fumegante malga de caldo…de feijões. O esforço abrira-lhe o apetitee a educação impedia-o de rejeitar o alimento colocado na mesa. Situação embaraçosa! Não valia a pena olhar para os lados mas fê-lo e deu-se conta de que todos comiam sofregamente, sinal claro de que merecia um pouco de sacrifício. À primeira garfada ainda tentou resistir, à segunda saboreou e, em poucos minutos, esvaziou a tigela. Surpresas ficaram a mãe e as tias do Joãoquando, no dia seguinte, ele próprio pediu que fizessem caldo de feijões. Por si aprendera que, muitas vezes, gostar ou não gostar pode ser questão de circunstâncias ou de necessidade.

    No fim dos anos 40, em muitas aldeias do país, as professoras não preparavam os alunos para o exame de 4ª classe. Quem pretendesse darao(à) filho(a) a instrução primária completa, teria que encontrar, em aldeia próxima, alguém que lho(a) acolhesse "à merenda"(2) o que implicava alterações na vida familiar. Assim aconteceu ao Augusto que foi recebido pelo pároco, primo do seu pai, residente numa terra a cerca de cinco quilómetros. Além do parentesco, os padres possuíam, nesse tempo, um papel, por todos reconhecido, na educação dos jovens. "Se for preciso dar-lhe umas palmadas, fica à vontade!" disse o pai do Augusto ao primo padre e, a partir de então, co-educador. Habituado ao lar paterno que deixava pela primeira vez, tentou adaptar-se à nova situação mas, teve sériadificuldade quanto à comida. A mãe já conhecia as apetências do rapaz mas a irmã do sacerdote não estava disposta a mudar os hábitos da casa e cumpria-lhe ensiná-lo a integrar-se neles. Também desta vez a dificuldade maior estava à mesa. À hora da ceia (4), o caldo de couves encerrava o menu. Que não gostava de caldo de couves, dizia, como se falasse com a mãe. Mas é preciso gostar de tudo, ensinava a dona da casa, eu e o meu irmão comemos o que a terra nos concede e tu tens que te habituar a fazer o mesmo e dar graças a Deus. Se eu comer "lanço fora" (3) argumentava o rapaz na tentativa de convencer a "nova família" de que o caldo iria fazer-lhe mal. Foi então que interveio o sacerdote: se lançares fora, apanhas as couves do chão e voltas a comê-las. Sem outro argumento para atalhar ao sacrifício, o Augusto comeu o caldo e nunca mais teve a ousadia de recusar a comida que lhe davam.

    Havia, no entanto, situações em que uma intolerância olfativa, por exemplo, causava verdadeira indisposição gástrica em caso de ingestão do alimento que a provocava. O Luís não suportava cheiro a queijo e as tentativas da mãe em contrariar essa tendência provocavam-lhe enjoo e vómito. Outro remédio a senhora não teve senão desistir do intento e abster-se de colocar na mesa a comida apreciada pelos demais membros da família. Essa intolerância manifestava-se também relativamente a algo muito apreciado pela quase generalidade das pessoas: marisco. Em certa medida, foi uma bênção para a economia familiar que se abstinha de o incluir no cardápio mesmo em dia nomeado.

    Se os exemplos acima descritos dizem respeito a comida, o gosto aplica-se a pessoas e situações as mais diversas. Gostar de fulano(a) ou de sicrano(a), de um espetáculo, de uma obra literária ou artística, de um facto, de uma ocorrência ou enunciar o sentimento oposto corresponde a manifestações constantes na interação humana. Em qualquer cenário, por mais difícil que seja a tarefa, se for cumprida com satisfação, o esforço é aliviado ou compensado e disso nos dá conta o provérbio "quem corre por gosto não cansa". Se queremos partilhar o que comemos com alguém e ele (ela) rejeita de forma pouco delicada é costume dizer-se: "para quem não gosta há de sobra"; quando a disponibilidade financeira é pequena mas desejamos muito adquirir alguma coisa, vamos por diante com a justificação de que "mais vale um gosto na vida do que dez reis na algibeira" como que em resposta mental à evidência:"não há gosto que não custe"; a alguém que "torce o nariz" a tudo o que se lhe oferece serve como luva o ditado: " ao gosto danado (4) o doce é amargo"a criticar o que é considerado esquisitice.Por definição, "O gosto é razão sentida" e nada mais há para acrescentar. O povo é sábio, encontra formas sucintas, palavras justas e apropriadas de transmitir conhecimentos que a vida lhe foi ensinando. Sendo anónimos, os provérbios são pílulas de sabedoria popular de todos os tempos e para todas as situações existentes, com pequenas mudanças na formulação em praticamente todas as línguas.

    (1) Cibo - pedacinho, bocadinho

    (2) Unto - gordura extraída do porco, bem batida e temperada com sal conservada no fumeiro para temperar a comida.

    (3) "Lanço fora" - vomito

    (4) "gosto danado" - gosto demasiado apurado a ponto de se tornar esquisito.

    Por: Nuno Afonso

     

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