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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-04-2014

    SECÇÃO: Crónicas


    CRÓNICAS DE LISBOA

    Haja silêncio!

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    Faz-me confusão o comportamento de muitos dos participantes nos velórios, porque com exceção dos familiares mais diretos, manifestando sentimentos genuínos pela morte do seu ente querido, alguns fazem dos velórios um “ponto de encontro”, porque assim o é, de facto, para muita gente que só se encontra naqueles “eventos”, aproveitando, então, para pôr a conversa em dia e abusar de todo o tipo de “festas”. De tudo se fala, das vidas próprias e alheias, contam-se anedotas, etc.. Ali, a morte foi apenas o pretexto para os encontros e porque, por vezes, o “dever do faz de conta”, para parecer bem aos familiares do defunto, também não pode ser esquecido. Aliás, nos velórios, o tempo passa lentamente, pelo que urge “matar o tempo” que dura um velório, embora agora muitos deles encerrem durante a noite, por questões de segurança e comodidade dos familiares. Afinal, o defunto pode muito bem “dormir” sozinho na casa mortuária e não é a companhia dos familiares que lhe vai restituir a vida, embora para estes o tempo de espera ajude a fazer o luto, questão verdadeiramente importante e, por vezes, dramática, porque o luto começa na morte mas vai muito para além da despedida no funeral. Para muitos, a dor, por vezes brutal, da perda, é sentida como um fim, como uma tragédia, como algo que nos tiram, limitando a nossa capacidade de gestão dessa perda e a capacidade para reinvestirmos na vida pós-perda. “A vida continua” – diz o povo, e manter viva a memória daquele que nos deixou é a melhor homenagem que lhe podemos tributar, por ele e por nós, os vivos que continuaremos o ciclo da vida.

    Nalgumas culturas um funeral é uma festa, apesar da maior ou menor dor que a perda representa para cada um dos vivos, mas, entre nós, um funeral ainda é um momento de dor, luto e consternação. Pode ser pretexto para cada um fazer a sua autoanálise de vida e das relações que manteve para com o defunto e se nada ficou por “resolver” (um perdão, um agradecimento, etc.), ainda em vida daquele, e com maior ou menor medo da morte, olharmos para a vida, seja no ponto de vista metafísico, seja nos demais aspecos que se servem do corpo que um dia acabará também ele a sua função na terra e para lá irá, mesmo que em forma de cinzas, prática agora mais moderna .

    Diferente postura é o que observamos nas salas de espera dos consultórios médicos ou hospitais. Ali, o ambiente é mais pesado, talvez porque o que nos leva lá seja algo que dói e que, por amor à vida, sentimos mais esse “amor” quando estamos doentes, e tudo fazemos para salvar o corpo e evitarmos o sofrimento que, assim se crê, não existe no pós-morte. Naquela antecâmara do diagnóstico médico, muitas pessoas competem pela doença e pelo sofrimento, suspiram, gemem e sem escutar o interlocutor até ao fim interrompem e atropelam o seu discurso, clamando para si próprio o primeiro lugar da doença, do sofrimento e da desgraça. Fazem ali uma espécie de catarse dos padecimentos, próprios e alheios mas, de tão repetido, o monólogo flui sem quebras ou interrupções, para martírio dos pacientes presentes. Precisam, contudo, que alguém dos presentes na sala lhes dê a oportunidade para iniciarem as lamentações e desfiarem, em catadupa, todo os episódios, ao pormenor, de todos os males de que padecem e que, esgotado o rol dos próprios, recorrem aos dos familiares, vizinhos e conhecidos. «Olhe, mas o meu marido teve muito pior». «... E no ano passado foi o nosso filho...». Ou ainda: «Nem imagina o coitado do meu vizinho, o que ele sofre» – argumenta. «Pior ainda foi o amigo do meu vizinho que morreu com essa doença» - contra-ataca a outra parte. Nesta altura, e muitas vezes, o tom já vai alto, assumindo o “diálogo” o teor de discussão e a mais feroz competição está ali patente, não passando despercebida a ninguém, mesmo que tente alhear-se de tanto “sofrimento”. Se alguém ousa entrar no “campeonato das doenças”, então a luta é renhida e só acaba quando um dos “sofredores” é chamado para a consulta. Até lá, cada um recorre às doenças e sofrimentos que a sua “equipa” padece, sempre com o objetivo de marcar pontos e derrotar assim o adversário.

    Obviamente que há algumas exceções e que fazem duma sala de espera o local ideal para “desenferrujar a língua” e a alma, tipo “figurantes de bairro” que fazem ali uma espécie de púlpito para de tudo falarem, saltando de tema em tema, com a autoridade dos “sabe tudo” que, para além do “blá blá”, pouco se importam se o ruído incomoda os presentes, muitos deles com as debilidades que ali os levaram. Afinal, estão ali, com pouca paciência para ouvirem os “papagaios sabichões, críticos e autoritários” que, ainda por cima, abusam dos decibéis. Por vezes , apeteceria fugir dali ou dar um grito de: “Silêncio!”. Aliás , raramente se vê afixado qualquer aviso nesse sentido, mesmo nas salas de espera das urgências “laranjas” (segundo grau de prioridade nas urgências hospitalares) ainda mais agora que se usa e abusa da utilização dos telemóveis, por vezes a centímetros dos nossos ouvidos ou vários utilizadores em simultâneo, tornando o ambiente bastante ruidoso. O pessoal de enfermagem ou auxiliar, que deveria zelar por um ambiente de silêncio desses espaços, não tem autoridade moral, porque, nesse aspeto, também não é um bom exemplo. Infelizmente, tenho passado, como doente, por vários serviços hospitalares, incluindo internamentos, nos últimos anos, e apenas num deles vi afixado o seguinte : «O ruído não faz bem! O bem não faz ruído!». Se nas capelas mortuárias é mais comum encontrar algum aviso a convidar ao silêncio e ao respeito pela dor, neste caso dos vivos, nos locais de “sobrevivência”, tal é muito raro.

    Não fomos criados para sofrer, mas sim para viver a nossa humanidade, em tudo o que ela significa, e essa manifesta-se tanto na presença da morte física dos outros, como na dor, nossa e alheia. «Poderei morrer da doença, mas a doença não me matará» – mensagem de elevada coragem e atitude de Manuel Forjaz que, recentemente e aos cinquenta anos, morreu de cancro e que, ainda na vida que cada vez sentia mais curta, pediu que o seu funeral fosse uma cerimónia alegre e que nele não houvesse choros nem vestidos e fatos pretos. A mim, que o “conheci” apenas nos poucos programas que fez na televisão (num canal por cabo e em horário tardio...), até poucos dias antes de falecer, tocou-me, profundamente, pelo exemplo de coragem e outras qualidades, mas também pela “dor da morte prematura”.

    Por: Serafim Marques

     

     

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