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    Arquivo: Edição de 14-03-2014

    SECÇÃO: Crónicas


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    O retrato de Matateu

    Como ultimamente tem acontecido, o meu dia começava com a alegria do João. Logo que se sentou ao meu lado, no autocarro, dizia-me cheio de entusiasmo: «Glória, olha o que me ofereceu aquela senhora que costuma vir connosco». Exibia orgulhoso uma caneta ilustrada com os símbolos do clube de futebol da sua paixão: o SLB. Era oficial, conforme se podia ver no selo que fazia questão de nos mostrar e um facto que o “banzava” era que a pessoa que lha tinha ofertado pertencia a um clube rival. Beijava a caneta de tal forma que nos fazia rir. A uma dada altura, alguém lhe diz: «Hoje vocês perderam mais um!». Perguntei-lhe quem era e ele disse-me que tinha morrido o Mário Coluna.

    Não fiz muita questão de saber quem era porque estaria certa que, a exemplo do que tinha acontecido com o Eusébio, as redes sociais se iam encher com partilhas de mensagens de condolências, enaltecimentos e tanto mais. Daí que, dava como certo não iria ter dificuldade em perceber quem era o homem de quem falavam. O dia passava e eu regressava a casa a pensar que nada tinha visto nas partilhas. Teria mesmo que recorrer ao “mister Google” quando tivesse algum tempo disponível. Divagava eu sobre isto enquanto ia arrumando a cozinha e fazia-me companhia o meu pai – um homem que ainda mantém um invulgar registo de memória para quem caminha para os 82 anos de idade.

    Quando lhe perguntei se já tinha ouvido falar do Mário Coluna, respondia como que sentindo ofendida a sua memória: «Então não havia de saber? Foi um grande jogador do Benfica e um grande homem. Mais, um “padrinho” para o Eusébio. Ajudou-o na sua integração quando ele veio para Portugal e até foi o seu padrinho de casamento». Ao falarmos do Eusébio lembrei-me de comentar com ele um facto que registei, com agrado – ainda bem que o seu clube do coração não o tinha deixado para trás. Claro que para eles era um prestígio tê-lo como um dos seus, mas isso também terá revertido a seu favor porque permitiu-lhe ter um fim digno, ao contrário de muitos jogadores que “tombam” sozinhos e abandonados à sorte que escolheram como consequência das suas inconsequências.

    A conversa derivava em futebol e embora não seja o desporto do topo das minhas preferências é sempre um prazer ouvir o meu pai ir buscar lembranças da sua memória. Continuávamos a falar da importância dos clubes poderem apoiar os seus jogadores mas também concordávamos que agora é o dinheiro que comanda este “desporto rei”. Um jogador, por si só, já trará na sua sombra os resultados financeiros que representa a sua presença no clube que aposta nele. Em tempos de hoje quanto valeriam os jogadores que fizeram histórias nas décadas de 50/60 e por aí fora? Pensei que se calhar também naquela época não jogariam tanto com a “máquina registadora às costas” – seria paixão “pura e dura”. De súbito, ouço uma exclamação do meu pai: «É indiscutível o valor que atribuem ao Eusébio, mas havia um jogador que não lhe ficava atrás na sua época». Perguntei-lhe a quem se referia e fiquei a saber – Matateu.

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    Nada entendida em lides futebolísticas, perguntei-lhe o que tornava este jogador tão especial. Disse-me que em campo, Matateu jogava com uma “ferocidade animal”. Agarrava-se ao jogo com uma paixão que o fazia golear as balizas com uma força invulgar e num remate tão preciso que era quase sempre garantido o “golo certeiro”. Lembrava-se que depois ele tinha emigrado para o Canadá e pouco mais se ouviu falar sobre ele. Fiquei curiosa pela forma entusiasta com que ouvi falar dele. Fui pesquisar – tinha razão o meu pai e por registos de imprensa que pude consultar dizia-se que num clube de grande poderio económico Matateu teria dado “Eusébio”. Li que este jogador tinha sido considerado “um dos melhores avançados de sempre” e ainda que sendo sedento de golos, lhe chamavam “o terror dos guarda-redes”.

    É também certo que posteriormente emigrou para o país de onde era originária a sua mulher e na bagagem levou uma contabilidade invejável – 217 golos apontados em 291 jogos para o campeonato, enquanto defendeu um clube do Restelo que o dispensou em 1964, tendo em conta que as várias lesões graves de que foi sendo vitima lhe diminuíram o “alto rendimento” que esperavam de si. Mesmo assim não abandonou as lides futebolísticas e entre clubes de “menor estrelato” por onde passou (ainda em Portugal e outros que, em terras do Canadá, o escolheram como um dos seus), Matateu só arrumaria as suas chuteiras aos 50 anos de idade. Esta longevidade invulgar para um futebolista fez com que fosse considerado o “Stanley Matthews” português.

    Anos mais tarde, o Belenenses ofereceu-lhe um estatuto semelhante ao que Eusébio desfrutava no Benfica, mas o jogador que teve a fama e o talento para ser um dos astros do desporto rei português (conforme li), recusou e escolheu o país que adotou e que por sua vez o adotou a si, como a sua derradeira casa. Seria assim, se o coração não se sentisse português e não tivesse falado mais alto – numa homenagem deste clube do Restelo que o emocionou. Matateu doava-lhes como recordação parte do seu espólio desportivo. É também a pedido do seu clube de sempre que em 8 de fevereiro de 2000 a família consentiu que as suas cinzas fossem depositadas em Portugal.

    Li que «o fotógrafo tem o poder de capturar almas, sem as aprisionar». Penso que foi um momento feliz para o fotografo que, ainda sem as facilidades dos retoques dos tempos de hoje, conseguiu registar nesta foto toda a “força de reação” que transmite o “ponta de lança”, que foi dentro de campo, Matateu. Seguramente que fora de campo, e muitas vezes, também terá precisado de todas estas características guerreiras para o ajudarem a superar os momentos menos bons que terá atravessado, numa vida igual à de qualquer um. Olhar esta foto deu também para compreender o respeito que este homem mereceu aquém e além-fronteiras. Para mim, pessoalmente, escrever esta ponderação ajudou-me a lembrar que com coragem nunca é tarde demais para se recomeçar e ainda que temos mais do que tempo para “arrumar as botas”. Pelo noticiário também fiquei a saber um pouco mais sobre Mário Coluna, outro goleador de gabarito. Gostei da atitude justa do Governo de Moçambique ao decidirem dar-lhe um funeral com honras de Estado.

    Aldous Huxley disse que «depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música». Por ser assim e por sentir assim, é que é o único silêncio que consigo tolerar enquanto vou dedilhando na construção dos meus textos, é a música. Hoje, escolhi como companhia o som da guitarra de Paco De Lucía – um dos maiores guitarristas da história contemporânea. O alcaide de Algeciras, a sua terra Natal, declarou hoje que a morte de Paco De Lucía é uma «perda irreparável para o mundo da cultura e para a Andaluzia». Eu acho que a perda irreparável é de todos nós e isto porque se em dias recentes o desporto ficou mais pobre, hoje é o dia em que também a música ficou mais pobre.

    Por: Glória Leitão

     

     

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