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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 12-02-2014

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    No meu reino de Liliput

    Tudo começava por olhar uma foto de um “poste de eletricidade”, familiar para mim tendo em conta que a “central” da minha terra era como uma extensão da nossa família e isto porque o meu pai tinha sido um “homem das linhas” – pertencia ao grupo dos que na década de 50 percorriam o país a puxar cabo e fundear os alicerces para receber estes postes. Em casa sempre nos habituamos às histórias que nos contava sobre os trabalhos que passou mas também o tanto que conheceu e aprendeu neste tipo de trabalho. Olhando a foto e olhando para os cabos de alta tensão que por ali passavam foi impossível não extrair o seu lado humano e pôr-me a “viajar” em pensamento até 1965.

    Era a altura dos meus 5 anitos e seguintes quando quase tudo passava pela vida de transformadores, postes e linhas, onde o meu pai, por circunstâncias da vida, assentou depois toda a sua vida para construir toda a nossa vida, na portaria de uma subestação. Pequenitos, sabíamos que “se nos portássemos bem”, podíamos ir à “central” ver a televisão e ficar lá parte da tarde, em convívio, porque lá existia uma sala excelente de convívio para os seus colaboradores e familiares. As férias eram também possíveis em praias onde sabíamos ter uma “casa” de que podíamos desfrutar. Contudo, não se descurava o fundamental – apoio na saúde e na formação escolar.

    Também a “meia” da nossa chaminé de Natal era recheada somente pelo “brinquedo da central” que primava sempre pela inovação para a época. Um deles lembro-me ser um livro das “Viagens de Gulliver” e eu, que adorava ler, deliciava-me a ler aquelas aventuras. Tinha sorte, porque a caminho da igreja da minha freguesia, eu passava pelo “palacete” (lembrei também esta passagem quando vi postada uma foto com os direitos reservados na sua utilização) e abrandava o passo para ficar lá a olhar para o meu “castelo”. Perante aquela visão majestosa, ainda mais para quem era pequenita, eu sentia-me uma habitante do pequeno reino de Liliput.

    Recordo que chorei quando derrubaram o meu “castelo” e pensei que a vida não era muito justa para os edifícios, que deviam ter quem os protegesse – da ruína, da decadência e até da ganância da mão humana. E a vida faz-nos crescer e conduz-nos por caminhos infindáveis onde percebemos que as coisas não são assim tão lineares – atravessamos marés baixas e marés altas que nos colocam no lugar de mar, de marinheiros e também de náufragos. Em viagens, também infindáveis, aprendemos depois a construir o nosso próprio “reino” e é também a vida que nos coloca umas vezes no papel de” súbditos” e outras vezes no papel de “senhores”, de alguém ou de algumas coisas, independentemente da “casta social” com que sempre seremos rotulados.

    Foto AMN
    Foto AMN
    Como registo para esta minha aprendizagem (nunca a dos outros) eu, de forma deliberada coloco-me no grupo da plebe e “sento-me à beira da estrada” a refletir no tanto que me tem sabido bem calcorrear todos os patamares dos reinos e reinados por onde me movi. Claro que a exemplo de António Nobre também eu – para grande mal, encontrei muitos outros castelos que eram “a phantasia” e que me iludiram e não me deixavam enxergar o nauseabundo que estava encoberto pela beleza do lápis lazuli e coral. Agora, à distância, percebo que se calhar esse terá sido um “defeito” de mais gente do que seria desejável e é de forma cara que esses erros se pagam.

    Mais aprendi, que o “rótulo” ou o “estrato social” é um estigma que somente existe na nossa cabeça. Quer seja no papel de soberano, de juiz ou de senhor – felizmente que por muitas vezes (e mais do que poderia supor), vi e continuo a ver que conta sim, o valor do “ser humano” e da capacidade de “se ser humano”. Seria incompreensível que assim não fosse, tendo em conta que nos reinos por onde todos nos movemos se veja pessoas que em atitudes de reis, tratam a suposta plebe como lixo tóxico. Pessoas que numa atitude de reis fazem tudo o que podem para exterminar os seus adversários, pares dos seus reinos e plebe, num espezinhamento inqualificável.

    Claro que Gulliver era ficção. Liliput também deveria ser ficção se nestes reinos por onde nos movemos todos, não existisse o lado hediondo da intriga e da maledicência, da inveja, da traição e até do ódio – muitas vezes a troco de nada. Gulliver não tinha cometido qualquer erro, nem tinha dado pérolas a porcos, pois somente se tinha atrevido a conseguir o tal tratado de paz. Contudo, pela desfaçatez deste seu gesto, não se livrou da sentença de morte a que foi sujeito por um soberano que nem da sua própria vontade foi dono. Até este rei era servo de alguma coisa, pois sabendo ser injusta esta sentença que ia assinar teve que o fazer numa decisão que lhe foi imposta pelo séquito da sua equipa, a exemplo do que já tinha acontecido com Pilatos.

    Não souberam como lidar com este protagonismo inesperado, gerado por um gesto de bom senso e mediação de alguém que tinha vindo de fora e que acabava por favorecer aquele pequeno povo. Preferiram optar pelo aniquilamento, a exemplo do que se faz com aquilo com que muitas vezes não se sabe lidar. Extrapolando e saindo do reino da ficção, se calhar será por isso que há pessoas que preferem não arriscar e optam por ocupar o “lugar do morto”, desresponsabilizando-se de resultados menos positivos que possam advir de atitudes que impliquem mudança ou ainda, colocar-se na posição de inquisidores, mais confortável do que na de “fazedores”. Mesmo arriscando, na forma como gosto de viver no meu reino de Liliput (que se move comigo para todo o lado) aprendi que todos nós temos um lado de frágeis e de gigantes e a “arte” prende-se somente com a forma como se equilibram ou camuflam essas duas características.

    Gulliver, para escapar à morte, teve que partir e eu, penso no quanto gostei de afinal ter ficado em vez de ter partido. Por onde quer me desloque tenho percebido que no lado humano da vida, por mais ínfimo que seja, há sempre espaço para mais um – refletia sobre isso com a lição de humanidade que me foi dada através do “Gusto”, que aos 51 anos abandonava definitivamente o nosso campo de futebol – não resistia a uma escolha de vida que foi difícil para a família, amigos e vizinhos compreender e aceitar. Humilde e até proscrito, certo é que um dia destes, uma igreja em Vermoim se encheu de gente, em sinal de respeito e de luto, como se de um “gigante” se tratasse, dando razão a Sérgio Vaz, que terá escrito: «Humilde é uma pessoa grande que trata todas as outras como se fossem maiores».

    Como o meu pequeno reino é feito de sentimentos, com rostos de gente, eu “abanco” também por aqui, onde sinto que há vidas com pessoas lá dentro, a exemplo do que já faço nas terras da cidade do meu ganha-pão – Ermesinde. Com todas as lições de coragem que a vida me vai dando, hoje foi o dia que escolhi para me atrever a sentar-me, pela primeira vez, numa mesa de convívio com gentes da minha terra. Fui-me sentindo preparada para fazer parte de um grupo. Como primeiro passo escolhi um que diz querer preservar a memória da nossa freguesia e eu quero perceber e aprender, do tanto que não sei. Decidi participar porque me faz sentido o que um dia li – «se quer ir rápido, vá só; se quer ir longe, vá em grupo».

    Por: Glória Leitão

     

     

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