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    Arquivo: Edição de 22-11-2013

    SECÇÃO: Literatura


    A VOZ DAS PALAVRAS

    António Ramos Rosa morreu nesta segunda...

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    No passado dia 23 de setembro, pelas 15h00, recebi a triste noticia que faleceu o Poeta António Ramos Rosa. Quando Gisela Ramos Rosa, sua sobrinha, me contou o sucedido, de que seu tio de 88 anos, morreu às 14h00, no Hospital Egas Moniz, em Lisboa, vítima de uma pneumonia, senti que a Poesia Portuguesa ficara órfã. Morreu, talvez, o último representante de uma geração de ouro da poesia portuguesa - Homens nascidos nos anos 10 e 20 do século XX, como é o caso de David Mourão-Ferreira, Carlos Oliveira e Mário Cesariny, Eugénio de Andrade, etc..

    Vencedor do Prémio Pessoa em 1988, António Ramos Rosa é um exemplo de entrega radical à escrita como talvez não haja outro na poesia portuguesa do século XX.

    Poeta, ensaísta e tradutor, nasceu em Faro, em 1924. A sua obra poética, iniciada em 1958 com a publicação de “O Grito Claro”, abarca quase 80 títulos, não contando já com antologias, compilações e livros escritos a meias com outros autores.

    Co-dirigiu as revistas literárias “Árvore” (1952-1954), “Cassiopeia” (1956) e “Cadernos do meio-dia”, onde colaborou como ensaísta e poeta e exerceu a crítica de poesia, atividade esta que prosseguiu no decurso de alguns anos na “Seara Nova” e que manteve na revista “Colóquio/Letras” da Fundação Calouste Gulbenkian. Também colaborou em diversos suplementos literários: “Diário de Lisboa”, “Diário Popular”, “A Capital” e outros.

    O universo imaginário na poesia de Ramos Rosa é espaço aberto no qual o poeta concretiza sua visão da vida e imagem do mundo. Já a linguagem poética é uma forma de (re)invenção e articulação do eu com o mundo. A palavra ganha força e poder de comunicação em um tempo “difícil”, que só o grito claro, o amor às palavras é que poderiam romper com o silêncio, tal como nos versos: «Escrever é abrir na sombra uma sombra / e respirar na sombra / um corpo de sombra. // Ninguém nos vê nem nos verá jamais. // Respirar a sombra viva». A linguagem poética é capaz de ajustar arranjos verbais próprios com processos de significação pelos quais sentimento e imagem se criam em um tempo denso, subjetivo e histórico. Os versos apresentam uma linguagem altamente elaborada e metafórica. As palavras impõem-se pela sonoridade e pelas combinações de que o poeta constrói o tecido verbal. O ritmo segue a métrica tradicional com versos polimétricos, e a falta de pontuação intensifica a turbulência do movimento do poema.

    A obra de Ramos Rosa, inscrita na modernidade, exibe novas formas, perspetivas e possibilidades de significação, sem renunciar ao passado. Através do ato de nomear, de operacionalizar o discurso, o poeta traça espaços de conscientização e cumplicidade com o leitor. Nesse sentido, o seu fazer poético é invenção, redescoberta da presença e construção de espaços possíveis operacionalizados pela linguagem. O poeta, ao discorrer sobre a poesia moderna, afirma que ela, enquanto procura sempre incerta do sentido, é uma aventura que se processa num espaço interdito, o espaço do não-sentido. A constante interrogação que caracteriza a literatura moderna gira em torno desse lugar que o próprio branco da página sugere, para restituir à palavra a dinâmica do desejo, o qual suscita, pela contínua transmutação dos significantes, novos sentidos e possibilidades de ser.

    Segundo Rosa, o poeta moderno não escreve para dizer algo que conhece, mas para dizer o que ignora, para encontrar o verdadeiro desconhecido, o novo, o inicial. Mais do que acolher experiências, restaurar paisagens, narrar enredos, os poemas roseanos acontecem enquanto experiência de um pensamento centrado num estado de linguagem capaz de (re)inventar a vida, tal como nas passagens de “Poema animal”, em que o eu lírico afirma: «Meus olhos não fabricam / a realidade ou tu: / limpos barcos, / novidade acesa como a terra viva, / movimento de braços, amálgama / exacta duna. // Meus olhos não fabricam mas encontram». A distância que a linguagem institui em relação ao real, conduz necessariamente ao estabelecimento de uma nova relação com o mundo.

    Neste sentido, a poesia é força capaz de transfigurar a realidade do homem. Palavra essencial, a lírica tem o poder de operacionalizar o discurso verbal, de dar sentido à vida e elevar o pensamento do homem. António Ramos Rosa deparou-se frente ao vazio, espaço em branco faz do poeta um ente solitário, cuja busca e solidão são iguais a todos os homens.

    As articulações da linguagem no intuito de apresentar o tema do mito e poesia concretizam-se nos poemas roseanos: registam as subtilezas de um fazer poético embalado na força da linguagem e na concretização de um dizer que aponta para imagens visuais, momentos de observação atenta de um eu em sintonia com o mundo circundante, como revela o eu lírico, na passagem de “O boi da paciência”: «Teoricamente livre para navegar entre estrelas / [...] / Marulhei-me de amor / e o amor desabrigou-me / Escrevi cartas a minha mãe desesperadas / colori mitos e distribuí-me em segredo / e ao fim e ao cabo/ recomeçar».

    A obra de Ramos Rosa revela a visão particular de mundo do poeta e sua atitude frente à problemática que envolve o ser humano. Os poemas são construídos a partir das coisas simples e quotidianas, que remetem às reflexões sobre o sentido da existência humana. A sua poesia, essencialmente lírica e comunicativa, tem o poder de sensibilizar o leitor, mostrando que ela pode ser vida, revelação e poder.

    A poesia de Ramos Rosa - no meio de toda essa agitação - é por essência revolucionária, pois parece surgir como espécie de tradução da instabilidade interior provocada pelo desequilíbrio do mundo exterior.

    «Penso que a minha poesia é de certa maneira a identificação de um país que por natureza está sempre submerso - um país latente e submerso», partilhava o Poeta em entrevista à "Revista" do semanário "Expresso" em 1999.

    QUEM ESCREVE

    Quem escreve quer morrer, quer renascer

    num ébrio barco de calma confiança.

    Quem escreve quer dormir em ombros matinais

    e na boca das coisas ser lágrima animal

    ou o sorriso da árvore. Quem escreve

    quer ser terra sobre terra, solidão

    adorada, resplandecente, odor de morte

    e o rumor do sol, a sede da serpente,

    o sopro sobre o muro, as pedras sem caminho,

    o negro meio-dia sobre os olhos.

    António Ramos Rosa, in “Acordes”

    Por: Ricardo Soares

     

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