Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 29-02-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 31-10-2013

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    “Não somos hoje o que fomos ontem nem seremos amanhã o que agora julgamos ser”

    Apraz-nos revisitar, de quando em quando, fragmentos de nós mesmos que fomos deixando pelo caminho ao longo da vida. Conforta-nos esse exercício de ressuscitação de criaturas talvez felizes que poderão ainda sê-lo mas de um modo diferente, que ficaram lá muito atrás, envoltas na bruma, recuo a um tempo que já não existe, de companheiros de viagem que foram e já não são, a evocação de alguns que nos deixaram para sempre, uns e outros a quem nada mais nos une do que um conjunto de vagas lembranças, de modo idêntico a roupas que vestimos, lugares que visitámos, amores que não resistiram às vicissitudes do tempo.

    Fingimos que estamos mutuamente felizes em rever-nos, talvez estejamos de certa maneira, mas também essa felicidade não passará de uma espécie de tributo ao passado porque não há pontes para a atualidade, o cenário só na aparência é o mesmo, estão lá os edifícios que, agora, cumprem outros desígnios, a instituição a que pertencemos foi extinta, mantêm-se ícones do passado que vemos com outros olhos: “o castelo altaneiro” que foi guardião da liberdade e identidade nacionais, hoje um ex-libris da cidade e sede do Museu Militar onde, há meio século, ainda podiam ver-se, como pífio troféu, as calças do Gungunhana, régulo vátua moçambicano, aprisionado por Mouzinho de Albuquerque num ato heróico e surpreendente; “a Praça da Sé” - que mantém a traça e a centralidade de outros tempos, em que o reduzido número de estudantes universitários formava pequenos grupos de conversa e dela faziam vitrina para admiração dos transeuntes aos “senhores doutores”, a igreja a que retiraram a dignidade de catedral, constantemente frequentada por pessoas devotas, um regular movimento de habitantes locais e gente das aldeias próximas, cafés tradicionais como o Chave D’Ouro - continua a pulsar como coração do burgo moderno e contemporâneo; “o jardim Dr. António José de Almeida”, cortejado pelo rio Fervença, que esconde o busto do Abade de Baçal, grande vulto da cultura transmontana, como ele desejaria na consabida modéstia que o caracterizava, e onde, nas noites estivais, se realizavam verbenas e a música, transmitida por altifalante, era convite para deleite pessoal, passeios, convívios e incipientes namoros sem aproximações físicas; o velho hábito de nomear as ruas centrais de cada cidade por rua direita, rua de trás, rua dos correios, tombeirinho, quando elas já possuíam e mantêm nomes de, respetivamente, rua dos Combatentes (da Grande Guerra), rua Conselheiro Abílio Bessa, rua Almirante Reis, rua 5 de outubro, a par das também antigas ruas e sítios de Alexandre Herculano, da República, do Loreto, Flor da Ponte. Cinquenta anos de transformações fizeram de cada um de nós um estranho em relação a outros e até a si próprio. O tempo, que cicatriza feridas, abre rios de distanciamento que o contacto, agora restabelecido, demonstra.

    Foram colegas de curso na Escola do Magistério Primário no biénio 1962-63, quando ainda vinha longe a criação do Instituto Politécnico. Na cidade, havia o Liceu, a Escola Industrial e Comercial, dois ou três colégios; fora dela mas no distrito, existia um colégio aqui, outro ali em vilas do concelho. As dificuldades financeiras quase gerais de manter filhos na universidade (Porto, Coimbra ou Lisboa) e a força do preconceito em relação às moças, que deveriam ficar sob a atenção e cuidados dos pais até ao casamento, encaminhava muitas delas, terminado o 5º ano do liceu, para a Escola do Magistério Primário, espécie de universidade local durante muitas décadas. Os rapazes, além da Escola do Magistério Primário, tinham a opção dum possível emprego na Câmara, nas Finanças, nos Correios, nos bancos. Ser professor(a) primário(a) era uma distinção, o (a) mestre-escola, a par do pároco, merecia o maior respeito das populações rural e urbana. No fim do verão, os lavradores iam buscar lenha para mitigar o frio da professora nos rigorosos meses de outono e inverno, propiciando-lhe, igualmente, a confeção das próprias refeições, nunca lhe faltavam os frangos de criação, coelhos de vez em quando, alheiras, chouriças e outras espécies de fumeiro ao longo do ano, ovos, quantos quisesse. Os (as) que viviam e exerciam na cidade tinham a asa protetora da família mas, em certas regiões, também recebiam presentes em géneros alimentícios. Quando foram abolidas as Escolas do Magistério Primário, os antigos candidatos a professores do, agora, chamado 1º Ciclo do Ensino Básico, foram obrigados a frequentar a universidade e a obter uma licenciatura.

    O exercício profissional dos (das) professores (as) que, agora, celebravam o seu cinquentenário de conclusão de curso, decorreu numa época de famílias numerosas. Em quase todas as aldeias havia escola primária, nas vilas e nas cidades o único óbice era a colocação do(a) candidato(a) na lista dos concursos e o preenchimento dos melhores lugares pelas professoras antigas que não tinham pressa de se aposentar. Cinquenta anos é muito tempo, distenderam-se os vínculos interpessoais, romperam-se uns tantos por força da natural separação, muitos olharam-se mas não se reconheceram. Previdente, a organizadora do evento inscreveu no programa a reapresentação dos que manifestaram interesse em participar. À medida que chegavam ao edifício que foi sede da antiga Escola, hoje Universidade Sénior, às exclamações de contentamento pelo reencontro juntaram-se muitas dúvidas traduzidas em perguntas, hesitações e enganos: “Tu quem és?”, “Não és a F.?”, “És a S. não és? / Não, sou a B./ E tu quem és?.

    Foi servido um Porto de Honra porque a ocasião era única, irrepetível. Na sala, previamente destinada às boas vindas, uma a uma, um a um foram declarando o nome e resumo do percurso feito, mais prolongados, ou mais contidos, de acordo com temperamentos e hábitos de falar em público. Ao narrador não escapou o à-vontade e a amplitude do currículo da Constança, o humor da Laura, a modéstia da Lurdes e da Benvinda, o talento organizativo da Elisa, mas o mais notório foi, sem dúvida, o grande número daquelas que mencionaram a situação de viuvez, tornando o ambiente mais frio do que a alegria do reencontro faria supor. No entanto, pertenceu ao João dos Santos, casado com a Basília da Cruz, o mais impressivo pronunciamento. Diminuído fisicamente devido a um lamentável acidente que há muito era do conhecimento geral, pretendeu aliviar o ambiente num jogo de palavras que acabou por não resultar como esperava por culpa do seu estado emocional:

    - Sou o João dos Santos, toda a gente me conhece porque fui seletivo e casei com a rapariga mais jeitosa do curso, a cruz da minha vida. Deus, a Quem agradeço tudo quanto me tem concedido, deu-me outra cruz bem mais pesada.

    foto
    A Clarinda, cáustica de seu hábito, ainda respondeu à primeira parte da intervenção gracejando com o antigo colega:

    - Cruz foi a dela por ter casado contigo…

    Porém as últimas palavras do João lembraram-lhe que não era caso para brincadeiras e pediu-lhe desculpa, tentando não resvalar para a lamechice.

    - Deixa lá, ainda estás vivo não estás?

    Não houve resposta porque se conheciam de longa data e os gracejos eram-lhes habituais. As apresentações continuaram e as atenções voltaram-se para outros.

    Do programa constava ainda a celebração da Eucaristia, lembrando os colegas que já tinham partido e pelas intenções dos (das) presentes.

    Como é da praxe em qualquer ato comemorativo e de acordo com o filósofo Plotino, segundo o qual é à mesa que se devem discutir os problemas que a vida nos propõe, o almoço, servido num dos melhores restaurantes da cidade, forneceu a ocasião ideal para que os convivas falassem dos respetivos percursos, para além da docência. A Laura, viúva e sem filhos, fez das viagens o seu hóbi de eleição. Esteve em todos os países da Europa e conheceu muito do Brasil, mas deteve-se prolongadamente na Ásia e no Extremo Oriente. O Vietname mereceu-lhe rasgados elogios pela beleza natural e a simpatia do seu povo, assim como o Camboja, a Malásia e Singapura, cujo senão é a vida demasiado cara; Macau é, nos dias que correm, uma cidade esplendorosa, com os seus casinos e a sua vida trepidante. O Almendra, formado em Direito, fundou uma empresa e faz consultadoria. Trabalhou com escolas do distrito do Porto. A Constança tornou-se formadora e continua a trabalhar com o mesmo empenho de outrora.

    O tempo disponível não deu para mais, havia que regressar a casa com um sentimento misto de alegria pelo reencontro dos que ainda vivem e de tristeza pelos amigos que já se foram para sempre.

    Por: Nuno Afonso

     

    Outras Notícias

    · Eu acredito…
    · “Pare, Escute e Olhe”

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].