Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 14-10-2013

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    A ilusória dimensão do tempo

    Sob a aparente quietude da natureza em paralelo à sucessão dos dias, o conhecimento humano avança e alastra de maneira quase impercetível ao comum dos mortais. Encaramos com naturalidade e filosófico determinismo o fluir do tempo, o suceder das gerações, a variabilidade dos fenómenos atmosféricos, tentando adaptar-nos aos imprevistos ou invocando a intercessão divina quando reconhecemos a nossa fraqueza e buscamos na transcendência o apoio indispensável; usamos a criatividade e a imaginação face aos obstáculos, lutamos para superar carências e tentamos ir sempre um pouco mais além na proposição e busca dos nossos objetivos, recorrendo a meios de que dispomos como se sempre ali tivessem estado.

    Porém, se compreendemos, aceitamos e nos conformamos ao que constitui o nosso, soi disant, destino, reagimos com espanto, mesmo com relutância ou incredulidade ao que foge ao trivial, ao ramerrão, ao que nos parece ilógico e inatingível. Interiorizámos certos progressos nos meios de transporte mecanizados como o automóvel e o avião mesmo ignorando os princípios que estão na sua génese e funcionamento; na energia que não se limita à resultante da força humana ou animal porque a quase todos já foi permitido usufruir de iluminação elétrica, de novas ou mais antigas tecnologias, ainda que não compreendamos os processos que as determinam; nas comunicações via rádio, televisão, telemóvel, internet e tutti quanti a que muitos já acedem, embora uns tantos continuem a estranhar essas vozes, músicas e imagens vindas de longe. Quando, em 1969, Neil Armstrong e Edwin Aldrin chegaram à Lua e o primeiro caminhou no solo do satélite, «um pequeno passo para o homem mas um passo gigantesco para a Humanidade», muitos recusaram-se a aceitar tal facto, entenderam que nada mais era do que propaganda política ou encenação transmitida via TV, outros criticaram-nos assacando-lhes a responsabilidade pela instabilidade atmosférica e por outros fenómenos disfuncionais. Pouco antes dessa conquista, o tio Álvaro Guindas, o único morador da aldeia que possuía um aparelho de rádio e porque eu “tinha letras”, acercou-se de mim com ar de mistério e saiu-se com esta:

    - Sabes que já foram à lua?

    Perante o meu ar de estupefação, acrescentou:

    - É berdade, home. Oubi-o eu no rádio. E foi um português o primeiro a lá chegar. Chama-se Gama.

    De uma maneira ou de outra, a conquista do espaço e a rivalidade entre norte-americanos e soviéticos era assunto de conversa nos meios urbanos e não havia como ignorá-lo também nas aldeias. Em dias de feira, nos comércios em que faziam as mercas e nas tabernas onde afagavam o estômago, nada do que se dizia à sua volta, fosse das “notícias dos jornais” ou boataria das respetivas terras, escapava ao ouvido cúmplice dos aldeões que depois “vendiam o peixe” à maneira de cada qual. Quanto à linguagem da rádio, o mistério adensava-se e não conseguiam distinguir a natureza dos programas que captavam, eram incapazes de compreender a diferença entre um programa noticioso e uma rábula. Neste caso, tratava-se de um sketch transmitido pela RDP ou pelo Rádio Clube Português sobre a conquista do espaço, nessa altura em fase adiantada de desenvolvimento.

    Mas, se o tio Álvaro Guindas admitia a possibilidade de alguém ter realizado essa proeza, outros rejeitavam-na de todo, sobrepondo à importância do projeto científico em curso, as tradições populares que faziam da lua e do luar motivo privilegiado para exprimir emoções poéticas. Nesses dias, os cariocas, fiéis ao seu espírito folgazão, traduziam num samba esse pathos por algo que estavam em risco de perder:

    foto

    Lua, ó lua,

    Querem-te passar p’ra trás!

    Lua, ó lua,

    Querem-te roubar a paz!

    Lua que, no céu, flutua

    Lua que nos dá luar,

    Lua, ó lua,

    Não deixes ninguém te pegar.

    O refrão era este:

    Todos eles estão errados, ( bis)

    A lua é…é dos namorados

    Mas, no princípio do decénio anterior, a quase totalidade do mundo rural vivia sem eletricidade, socorrendo-se de luminárias a petróleo: candeia na cozinha, candeeiro na mesinha-de-cabeceira e lampião de manga com dispositivo elevatório em tarefas exteriores; água canalizada dentro de casa era algo de que alguns tinham ouvido falar mas cuja utilidade não era reconhecida, banho só para as crianças aos domingos antes de ir à Missa e as necessidades fisiológicas satisfaziam-se em locais recatados para as mulheres, bastante mais fáceis para os homens; recurso aos médicos e hospitais só em casos extremos, qualquer perturbação na saúde resolvia-se com chás, mezinhas, benzeduras e quejandos por recomendação ou auxílio das benzedeiras, dos bruxos e dos “endireitas” em casos de desarranjos físicos; na maioria das vilas e cidades da província, os automóveis existentes contavam-se pelos dedos; muitas aldeias não tinham via de circulação que merecesse o nome de estrada, não mais que um caminho arranjado pelos moradores pelo qual, em tempo de chuva, os taxistas se recusavam a transitar; telefone era algo impensável; o carteiro fazia vários quilómetros diários, a pé, para entregar e receber de volta as malas da correspondência, ainda assim a única forma de comunicar com parentes e amigos à distância e de receber, na ocasião própria, avisos das Finanças para pagamento da décima e dos relaxes; muitas cidades e vilas não dispunham de mais que uma ou duas livrarias e/ou papelarias indispensáveis a estudantes, doutores e escriturários comerciais; dois ou três cafés de frequência classista (um para os senhores da terra, outro, com bilhares, para estudantes, soldados e suboficiais, um terceiro aberto a clientes indiferenciados) e várias tabernas. O Toneco Gomes, estudante universitário a passar férias na vila natal, ironizava:

    - Por cá, ou se morre de tédio ou de cirrose; eu prefiro a segunda hipótese.

    Quase sem nos darmos conta produziram-se alterações significativas num reduzido lapso temporal. A maquinaria invadiu os campos, passo a passo os trabalhos agrícolas tornaram-se menos esgotantes e mais rápidos, os adubos fizeram multiplicar as sementes em terras quase exauridas; os primeiros emigrantes, de regresso à terra, procederam à canalização de água para as suas casas, que mandaram reconstruir com quartos de banho agora considerados de primeira necessidade; apareceram as primeiras estradas municipais e os primeiros automóveis de moradores locais; as grávidas passaram a frequentar os hospitais, a mortalidade infantil decresceu e os médicos passaram a ser solicitados mais assiduamente; maior número de crianças demandava, agora, vilas e cidades para continuarem os estudos, vilas e cidades expandiram--se, chegou o telefone público e a eletricidade aos sítios mais recônditos, o que permitiu o uso de rádios e televisores além de iluminação mais cómoda; emigrantes demandaram países da Europa, enviaram dinheiro para Portugal, construíram casas e compraram propriedades, os progressos científicos tornaram-se mais frequentes e também mais fáceis de compreender. Em menos de vinte anos o mundo tinha mudado significativamente. As pessoas da minha geração sentiam que tinham pulado da Idade Média para a Idade Contemporânea. Acontecimentos políticos de relevo como a criação da que viria a ser a CEE, mais tarde União Europeia, o movimento de 25 de abril de 1974, a descolonização, a Queda do Muro de Berlim e a desintegração da URSS sucederam-se a um ritmo quase alucinante. Dir-se-ia que o tempo deixou de ter o mesmo significado.

    Por: Nuno Afonso

     

    Outras Notícias

    · Leituras na diagonal

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].