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    Arquivo: Edição de 27-09-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    Em busca de perdão

    Se de boas intenções está o inferno cheio, de lambadas está bem provida a cultura popular, no capítulo de advertências, ameaças e castigos, desde “merecias uma (s) lambada (s)”, “do que tu precisavas era de umas boas lambadas”, “olha se queres que te dê umas lambadas!”, “levas uma lambada que até andas de roda”, passando por “levou umas valentes lambadas” ou “foi tudo corrido à lambada”, até “é um bom pai (uma boa mãe) apesar de ter sido criado (a) a pontapé e à lambada” além de outras variantes, o que evidencia que o relacionamento entre membros de qualquer comunidade ou grupo familiar tem esse gesto como importante elemento de comunicação seja para persuadir com mais energia e eficácia, seja para meter na ordem algum insurgente, em derradeiro caso para reagir a qualquer ofensa.

    Ninguém é perfeito e não há relação humana sem tensões, que podem expressar-se por um tom de voz mais alto e mais áspero do que o habitual, por ameaça ou por recurso ao que, comummente, se diz “vias de facto”. Em tempos, do lar à escola, na aprendizagem de uma arte, nos jogos ou na defesa do que se tinha por seu, o recurso ao castigo antecipava-se, frequentemente, à simples admoestação. O filho malmandado ou rebelde aprendia mais depressa a cumprir os desígnios paternos com um puxão de orelhas ou umas lambadas oportunas; o aluno distraído ou de memória tarda encaixava melhor a tabuada, as operações matemáticas, os afluentes da margem direita e da margem esquerda dos maiores rios do todo nacional, os sistemas orográficos e respetivas serras, a grafia correta da língua com uns valentes cachações quiçá umas reguadas mais conformes à força e aos humores do mestre do que à tenra consistência da mão infantil; o aprendiz de alfaiate, de carpinteiro, de comerciante ou de sapateiro mais depressa se adaptava ao ofício com umas “lamparinas” ministradas a seu tempo do que por meio de técnicas persuasivas e explicações plenas de sabedoria, de compreensão, de tolerância; nos jogos, impunha-se, naturalmente, o tamanho do latagão quando o “meia leca” ousava impor-se seguindo apenas as regras do jogo; a propriedade era sagrada, assim consideravam os seus detentores prontos a defendê-la de qualquer abusador por suas mãos, processo mais célere e eficaz do que recorrendo à justiça, lerda e tantas vezes enredada em manobras processuais e em critérios interpretativos eticamente duvidosos, se não moralmente condenáveis.

    Como outros vocábulos ao gosto popular, lambada é uma de muitas variantes de valor conotativo diverso, consoante o nível de língua de emissor (es) e recetor(es) e do contexto verbal em que ela ocorre. Assim, as formas estalo, estalada, estaladão compatibilizam o castigo com o ruído que é suposto produzirem, a última a enfatizar também a dureza da pancada. Quem pretende impressionar um tipo incómodo não só com a ameaça mas também com um termo de significante estranho e de nível menos rasteiro recorria a uma expressão do tipo “levas semelhante bufardo que nem sabes de que terra és”, capaz não de lhe obscurecer a memória como a poção que a deusa Circe fez beber aos marinheiros de Ulisses mas de lha confundir à procura da soma entre esse ente de sonoridade estranha, mais a entoação, mais a dureza facial do promitente agressor. Já tabefe, merecedor de entrada em qualquer dicionário que se preze, é mais curto e menos agressivo do que os anteriores. A palavra lamparina, antes mencionada, remete para a luz que a sua aplicação produziria na mente do visado abrindo-lhe o entendimento. Chapada lembra uma superfície plana quer da mão que inflige o castigo, quer da face a atingir. E para não alongar demasiado a conversa, refiro apenas um tapa, ou tapa-olhos, coisa menor na intensidade e no efeito, uma espécie de “prego no prato” em lugar do estandardizado bife que as anteriores representariam. Quem desta maneira pensasse, recorreria ao aumentativo tapona, evitando desvalorizar a ameaça antes a reforçando com um complemento bem popular que poderia ser nas ventas, no focinho, na tromba ou nos cornos.

    Além da bofetada, meio de castigar mais disponível, pronto e rápido a par dos puxões de orelhas, mais eficazes pela autoridade do castigador do que pela força posta em obra, havia, naturalmente, outros que requeriam mais do que a mão: a biqueira do tamanco ou da bota, quiçá um inocente chinelo, uns e outros aplicados às nalgas do faltoso, a já subentendida régua, a vara ou cana sempre que o (a) professor(a) precisava de encurtar distâncias, evitando distrações e condutas inapropriadas ao local e às tarefas distribuídas, excecionalmente a navalha, signo abrangente que podia ser mero canivete, adquirido numa tenda de feira, ou em qualquer barraca na S.ª da Serra, da Saúde ou da Assunção e tudo quanto fosse objeto cortante, além de vários outros inventados para molestar ou apenas instrumentos de trabalho em dado instante tornados meios de agressão. Em qualquer sociedade pacífica e bem estruturada, pretende-se que os valores da amizade, da solidariedade, da entreajuda, do respeito mútuo sobrepujem o recurso à violência mormente nas suas formas radicais. Na fase de socialização, os jovens adquirem, idealmente, um conjunto de valores que hão de tornar mais efetiva a sua integração nos diversos grupos sociais de que venham a fazer parte pela vida fora: familiar, afetivo, profissional, comunitário, militar, empresarial. Pais e educadores são os agentes fundamentais nesse processo de aprendizagem e boa integração no meio.

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    O século XX vivia ainda a ilusão da meia idade mas, no seu íntimo, cresciam forças que, em breve, haviam de desvelar-se em fenómenos científicos e técnicos espantosos embora, nos aspetos imateriais, as mudanças fossem quase impercetíveis. A instrução não era ainda considerada valor inquestionável. Aprender a ler, escrever e contar era tudo de que os jovens precisavam para darem continuidade ao tipo de vida que haviam herdado dos seus ancestrais e viriam a transmitir aos vindouros. Eu e os meus seis irmãos tivemos o privilégio de nascer numa família que sobrepunha esse valor a tudo o resto. Para os nossos pais era ponto de honra que, terminada a escola primária, prosseguíssemos os estudos. Nas terras do interior, a permanência nos meios urbanos para frequentar o liceu ou a escola industrial era demasiado cara para a maioria das famílias. O destino reservado aos rapazes era, pois, o seminário; as meninas seguiam para determinados colégios de freiras. Esses estabelecimentos de ensino além de muito mais baratos, possuíam a dupla vantagem de oferecer aos alunos uma formação religiosa consentânea com as crenças dos progenitores e um ensino de qualidade reconhecida. Todos enveredámos por esse caminho. Entrei para o Seminário em 1950 mas havia de passar ainda mais de uma década para que outros nos seguissem o exemplo. Outra questão fundamental para os nossos pais era a forma de exercer a autoridade familiar. Nosso pai dizia: “a maior humilhação para um filho é bater-lhe na cara”, o equivalente a considerar o gesto não como castigo moderador mas como punição estigmatizante. Não me recordo de alguma vez terem infringido a norma estabelecida, a repreensão e o exemplo eram receita eficaz. A nossa mãe valia-se do chinelo que trazia por casa para nos aquecer o traseiro, veio de transmissão que reconvertia a punição em mensagem construtiva.

    Tais princípios educativos nem sempre tinham correspondência nas instituições religiosas em que éramos admitidos após a conclusão do ensino primário. Admito que fosse mais fácil manter a disciplina numa família intimamente ligada pelo amor do que num espaço densamente povoado por dezenas ou centenas de rapazes ou meninas procedentes de lares muito diversos na solidez e nos hábitos. O amor de Deus não era, para crianças, fermento de grande eficácia quando encarnado por um conjunto de pessoas desconhecidas mais propensas a reprimir infrações de regulamentos, tão naturais nessas idades, do que em esclarecer, com brandura, as condutas adequadas a cada circunstância. Foi difícil a adaptação. No primeiro ano, sofri duas bofetadas, as únicas em toda a minha vida, por motivos que, até hoje, considero mesquinhos. O autor da primeira foi o padre Mondariz.

    O padre Mondariz era expedito no castigo, frequentemente com laivos de crueldade. Na vigilância em sala de estudo ou durante as aulas quando o aluno era apanhado em falta – desconhecimento da boa resposta, erro nos deveres, postura incorreta ou rebeldia – todos os meios serviam para o castigar: além da bofetada, o padre Mondariz descobria, em objetos da sala, aplicações que não lembravam a mais ninguém, para tornar a punição mais incisiva ou para verter o excesso de bílis. Nesse tempo, ninguém ousava queixar-se aos progenitores dos maus tratos sofridos, a autoridade dos educadores era inquestionável. Todavia esses procedimentos deixavam marcas para o resto da vida, manchas que ficavam na alma, de mistura com tantas recordações agradáveis como a presença de tempero estranho a estragar o prazer na degustação de um bom prato. Para relembrar essa parcela da nossa infância, lembraram-se alguns antigos colegas de convocar para o velho convento franciscano que serviu de Seminário Menor um encontro anual, convite dirigido a muitos dos que por ali passaram. A chegada de companheiros que nunca mais se tinham visto, o jantar em que eram servidos os chícharos (feijão-frade), o sarau abrilhantado por aqueles que tocavam algum instrumento musical, a dormida na antiga camarata, a Missa dominical com os cânticos da época aberta à população da vila e a despedida até ao próximo encontro eram as maiores atrações do reencontro. Surpresa geral quando vimos chegar o ex-padre Mondariz, acompanhado da esposa, a distribuir cumprimentos e simpatia, um pouco mais castigado pelo tempo do que a maioria dos presentes. Houve boa disposição e todos procuraram aligeirar velhas mágoas. O homem que ali tínhamos era outro como cada um de nós. Mesmo sem pedidos de desculpa formais. A vida é por demais passageira para que se guardem rancores.

    Por: Nuno Afonso

     

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