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    Arquivo: Edição de 31-05-2013

    SECÇÃO: Literatura


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    A VOZ DAS PALAVRAS

    Contracorpo

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    Ao abrirmos o livro encontramos uma citação de Marguerite Duras: – «Sou a única a amar o meu filho, a compreendê-lo verdadeiramente, e mesmo através das cenas, dos gritos, continua a ser amor. Se eu morrer, ele será muito infeliz. Com ele, partilho a mesma loucura, a mesma violência, o mesmo amor».

    “Contracorpo”, sexto romance de Patrícia Reis, é um livro marcante, aparentemente sobre a morte, mas no fundo sobre a recuperação, sobre quem sobrevive à morte. Acima de tudo é uma dolorosa reaproximação entre Maria, de 40 anos, mãe e recém-viúva, e Pedro, de 15 anos, o mais velho dos seus dois filhos.

    O parto marca o início da separação entre mãe e filho. A partir desse momento, a figura materna será sempre exterior à vida que criou dentro de si própria.

    Se na infância a criança anseia pela mãe, na adolescência o “quase-homem” tenta, atrapalhado numa confusão de sentimentos para si indefiníveis, romper com essa dependência. O filho deixou de ser criança, mas ainda não é adulto.

    É no interior desta indefinição que Patrícia Reis aborda a complexa relação entre uma “mulher-mãe” e o seu filho “quase-homem”. É essa luta, a maior e a mais violenta: a de dois corpos, da mãe e do seu filho, que desaprenderam de se conhecer.

    Quando “Contracorpo” arranca, os campos estão exaltados: «Maria diz que são horas do jantar, e é o início de outra pequena batalha. Ele põe a mesa, o cão fareja os pés na esperança de comer e ir à rua. Então – pode ser que seja assim –, o telemóvel toca e Maria prepara a massa e o molho com um certo automatismo, ele já sentado sem ligar a nada, esperando obediente, especado em frente do prato».

    Maria e Pedro. Mãe e filho. Uma só casa. Um cresce e a outra definha – uma viagem para gerir o medo da perda entre uma mãe e um filho que estão a deixar de se conhecer.

    Estamos num impasse, com o quotidiano estreito, macerado com força em cima de uma bigorna: «As manhãs são duras, afinal. Os corpos. Talvez sejam os corpos, moídos do sonho, desligados ainda. Os cereais caem das tijelas e espalham-se pelo chão. O cão rejubila».

    De um dos lados constata-se que falar com um adolescente se assemelha a dar banho a um peixe.

    A saída é uma estrada, uma longa viagem de carro de Lisboa a Roma: a ideia é comer quilómetros mas poder trazer o contador a zeros. O cão fica em casa. Durante a viagem, os intervenientes lidam com a culpa, a frustração, e a incapacidade de mostrarem o que sentem um pelo outro. Maria não consegue chegar a Pedro, enquanto ele vagueia em pensamentos confusos. De formas diferentes, ambos sentem-se perdidos e, consequentemente, necessitados de se reencontrarem.

    Com uma simples focagem tudo muda: «Faço zoom junto aos olhos, as pequenas rugas, as sobrancelhas, um sinal junto ao nariz, os cantos da boca descaídos, quase severos, um traço que já vi anteriormente na boca da minha avó. Sempre considerei a minha mãe uma mulher bonita».

    Patrícia Reis optou por uma estrutura a duas vozes, sendo que cada uma delas se desdobra em polifonia. A mãe fala do filho na terceira pessoa, como se o contasse e com isso se contasse a ela nessa relação que quer aprender a gerir. Ela fala de si com distanciamento, não é um eu. Há uma identidade mais complexa. A de alguém na dependência do outro. Ela é sempre em relação a alguém: a Pedro, a Simão, o filho mais novo, à mãe, ao pai, aos dois irmãos, Rodrigo e Miguel, ao marido, Francisco, que morreu antes de tempo. Pedro é um eu. Tem uma identidade própria. Ele conta: «A mulher está morta e eu, mesmo dentro do sono, sei que ela está morta. A morte não se diz, sente-se e eu sei que, apesar de tudo, é evidente que o coração dela parou e que os seus olhos não me vêem. Não se apercebe da minha presença. Mas estou ali. Tal como ela. Um corpo. A mulher é apenas um corpo». A mulher é a mãe num sonho mau. E tanto a mãe como Pedro andam a lidar com o mesmo medo sem que um saiba do medo do outro – a perda.

    Os capítulos de Maria vão de “a armadura” à “janela”. Os títulos vão dando indicações do tom e da revolução tranquila que está em marcha. De um peso opressivo a um descomprimir de uma leveza diáfana.

    Os capítulos de Pedro começam sempre por “Pedro conta”. É uma homenagem ao estilo diário, caderno de segredos, que associamos a todos os adolescentes.

    A viagem é imensa. «Para que serve esta viagem?», pergunta Pedro a Maria. «Para negociarmos», responde-lhe ela. Negociar o espaço comum que terão de partilhar, sozinhos, para já num carro em silêncio. A viagem serve, essencialmente, como mecanismo de introspeção e autodescoberta.

    As paragens em Marselha e em Roma, destino final num inspirado improptu, são as mais importantes. E aí é a literatura e arte, de Alexandre Dumas a Rafael, de que ambos se nutrem, o que vai colar estes dois seres.

    O final – ou melhor, o quase final, para não estragar a descoberta – apesar de ser ao lusco-fusco, é luminoso: «Ali estavam, em plena Roma, ele na rua e ela ali, à janela, a rir de um palhaço de Verão. Podia ser outra coisa. O palhaço despediu-se e um homem vestido de preto surgiu com uma coluna de som independente. Começou a cantar Nessun Dorma. Muitas pessoas gritaram e aplaudiram. Maria fechou a janela. Dali a pouco já não estaria sozinha».

    A angústia gerada no leitor deve-se a essa enorme contenção. São muitos os espaços em branco, os parêntesis que se abrem e que cada um dos que leem preenche como sabe ou pode, como os que narram. O silêncio deles também é o de cada um que lê e nunca chega a ser insuportável. Apenas incómodo.

    (*) [email protected]

    Por: Ricardo Soares

     

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