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    Arquivo: Edição de 27-05-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    A capella

    Ouvia na televisão uma notícia que se prendia com um novo grupo musical que se lançava na área do entretenimento e se atreveram a cantar “a capella”. Nada fácil tendo em conta que estão ali, expostos, a “nu”, mostrando aquilo que valem cada um deles e/ou todos eles. Enquanto eram entrevistados ouvia excertos das suas músicas (num som produzido unicamente pela voz) e pensava na coragem de gente que escolhe cantar assim e o difícil que será cantar sem o acompanhamento de música que lhes protegeria alguma falha. Dei por mim a desafiar a mente apelando à lembrança do que se assemelharia a este tipo de arte, e estas reflexões “transportaram-me” aos artesãos, os que trabalham o metal, a verga, o vidro, a filigrana, a pele, a arte de trabalhar a madeira, a arte da culinária, etc. - um conhecimento que na sua essência é passado através das gerações, porque não existem guiões ou manuais para uma componente única e especial - o cunho pessoal.

    Algum tempo após esta anotação que tinha feito, tive a honra de presenciar o lançamento de uma “Coletânea de Poetas Maiatos” onde as pessoas que acreditam na sua poesia tiveram a oportunidade de ir declamar os seus poemas (recuei no meu registo de memória e situei-me no verão do ano passado onde tinha presenciado o mesmo, em terras de Ermesinde). Naquele momento voltei a sentir que não estando em posição de avaliar a qualidade dos poemas que ouvia declamar, encontrei um denominador comum em todos: as pessoas acreditavam naquilo que liam, e isso percebia-se pela ênfase apaixonada que se sentia na sua leitura. Num evento que juntava gerações diferentes (e aqui eu sorri quando vi uma mãe que se cruzava com filho neste amor pela poesia), a vida voltou a provar-me que nada acontece por acaso porque, no final, o encerramento era feito com uma poetisa que também cantava e ali, com uma tremenda dignidade, não recusou o convite de partilhar um fado, que por ausência de música de acompanhamento, teve que ser cantado “a capella” e que valeu, acima de tudo, pela coragem. Eu voltava a estar perante pessoas que acreditavam em si mesmas e no seu sentir, que espelhavam na forma de poemas.

    Foto GL
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    Este fio condutor de raciocínio situa-me nos autodidatas que escrevem, porque escrevem, expondo-se, por vontade própria, às críticas a que sempre se estará sujeito. Uns sentindo pelos outros, outros sentindo por si mesmos, certo é que poesia ou prosa é tudo uma conjugação de palavras que nós distribuímos de forma diferente, em textos diferentes e é de novo a vida que se está a encarregar de me mostrar que mesmo nos casos em que não exista sustentação (pelo facto do conhecimento ser feito de forma empírica), a arte de criar e até a arte de viver será feita “à capella” pois cada um buscará dentro de si mesmo a musicalidade para a sua obra, para a sua história, para a sua vida. Toda a arte tem mesmo a sua beleza (mesmo que peculiar e não erudita) e terá o seu público, nem que seja “secreto” pois, muitas vezes, também é a vida que nos força a adotar como nossa a opinião dos outros e é implícito que essa atitude de renúncia pessoal que impomos a nós mesmos será outro tipo de coragem que aprendi a respeitar num silêncio que precisa de ficar escrito nas entrelinhas.

    A caminho de casa ponderava que fiz bem ter escolhido o que me faz feliz - recolher “pedacinhos de vidas” que andam por aí espalhados à deriva e juntá-los em pedacinhos de escritas. Também ouço: «É uma leitura de introspeção porque nos “agarra” numa viagem em que vemos as coisas através de uma perspetiva diferente». Um dia perguntaram-me se lia. Respondi que de momento não, tinha escolhido escrever testando desta forma o meu registo de memória. É mais que lógico que o medo e a hesitação também me invadem (mesmo no papel de artesã), mas não tantas vezes como no início. O tempo foi-me ensinando que as vírgulas e os pontos são importantes para ditar o “ritmo” da leitura, que os parágrafos são fundamentais, que temos que ser objetivos, que se deve suprimir tudo o que possa ser considerado maçudo, que os textos não se devem alongar e devemos definir um timing para a conclusão das nossas próprias conclusões. Das opiniões críticas que sentia necessidade de pedir (muitas vezes até de forma exagerada), percebi posteriormente que cada um ouve a sua “própria canção”, que as leituras podem ser feitas na diagonal, que as vírgulas, os pontos de interrogação e os pontos finais também têm a “batida” do coração e das emoções de cada um.

    Tenho aprendido que para diferentes formas de pensar e até de sentir há caminhos que compete a cada um de nós desbravar, construir e arriscar. A Bia, uma jovem com 15 anos, fez-me compreender isso, porque naquele encontro de poetas, acompanhada pela sua viola, animava o evento com interlúdios musicais e, quando se enganava, olhava o público de frente, com uma cabeça elevada pedia desculpa e, sem hesitação, recomeçava tudo de novo, sem medo que lhe tirassem o sorriso que nunca abandonava. Possivelmente Miguel Torga teria razão quando escrevia: «A vida tem o sentido que lhe damos. Tem a nossa riqueza, o nosso entusiasmo, o nosso orgulho… ou a nossa covardia» (Diário XII).

    Por: Glória Leitão

     

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