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    Arquivo: Edição de 17-05-2013

    SECÇÃO: Destaque


    Obra e vida de Álvaro Cunhal visitadas em Ermesinde no ano do seu centenário

    Fotos MANUEL VALDREZ
    Fotos MANUEL VALDREZ
    Assinala-se neste ano o centenário do nascimento de uma figura incontornável da história de Portugal, Álvaro Cunhal. Ao longo deste 2013 realizar-se-ão um pouco por todo o país inúmeras iniciativas visando evocar a obra e vida do político, do artista, do escritor, e sobretudo do homem que passou a maior parte da sua vida – senão mesmo toda a sua existência – a lutar pela liberdade e pela democracia. Mais do que uma figura histórica do nosso país Álvaro Cunhal é um ícone do partido que ele próprio ajudou a edificar, o Partido Comunista Português (PCP). Contudo a obra construída por Cunhal ultrapassa em muito as fronteiras desta força partidária, sendo a prova o facto de ao longo deste ano largas dezenas de instituições públicas – com escolas e universidades à cabeça –, bem como figuras ligadas a outros quadrantes políticos, estarem, ou irão estar, a evocar o trajeto de vida desta personalidade (desaparecida em 2005), conforme aliás ficou vincado em Ermesinde na noite de 10 de maio no lançamento de “Álvaro Cunhal, uma obra multifacetada”. Organizado pela concelhia de Valongo do PCP este debate decorrido no auditório da junta de freguesia local contou com a presença de inúmeros militantes e simpatizantes comunistas, alguns mais conhecidos do que outros, que não perderam a oportunidade para recordar o histórico líder do seu partido pelas vozes de José António Gomes e de Daniel Vieira, os dois oradores convidados a dar vida a esta iniciativa. Um evento aberto com uma exposição – no exterior do auditório – onde estavam retratados vários capítulos da vida ativista de uma figura nascida a 10 de novembro de 1913, uma vida que não se confina somente ao passado, mas igualmente com lições para o presente e o futuro, como comprovava o primeiro painel que dava vida a esta exposição – a qual dias antes havia atraído a si centenas de curiosos olhares aquando da sua estadia na Estação de Ermesinde – onde a par da imagem de Cunhal se lia “vida, pensamento, e luta: exemplo que se projeta na atualidade e no futuro”.

    Já dentro do auditório Adelino Soares, o moderador do debate, dava o mote para o que em seguida se iria passar, uma viagem analítica pela vida e obra da histórica figura comunista, o qual para o coordenador do PCP/Valongo deixou às atuais e futuras gerações «muita coisa para pensar».

    ÁLVARO CUNHAL – O CONSTRUTOR DO PCP

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    Em seguida a palavra foi dada ao primeiro orador da noite, Daniel Vieira, militante comunista licenciado em História, e atualmente presidente da Junta de Freguesia de S. Pedro da Cova, que no decorrer da sua intervenção revelou um pormenor curioso que atestava a sua proximidade ao lendário líder do seu partido: o seu avô havia sido companheiro de cela de Cunhal em Peniche! Daniel Vieira que começaria por sublinhar que o facto de ao longo deste ano Álvaro Cunhal estar a ser – ou que ainda irá ser – evocado por políticos de outras forças partidárias, por escolas, e outras instituições públicas era sinal demonstrativo não só da grandeza mas também de respeito e admiração pelo histórico líder. Posteriormente o jovem militante comunista deu início à sua oração, centrada em Álvaro Cunhal enquanto construtor do PCP, tendo para isso recorrido a uma análise pormenorizada do livro “O partido com paredes de vidro”, obra escrita por Cunhal onde este procurou de uma forma sintetizada mostrar a forma como os comunistas desejavam que fosse o seu partido. Neste livro, escrito em 1985, o líder comunista procurou dar a conhecer a natureza do PCP, os objetivos e o conceito deste. Num ensaio onde não escondeu sequer os traços negativos do partido, numa espécie auto crítica, Cunhal retrata um partido cujas raízes aludem à classe operária, um partido filho da classe operária, como ele próprio defende. Dado estatístico curioso que atesta a importância desta filosofia, por assim dizer, é que na altura em que Álvaro Cunhal escreveu este livro 77 por cento dos militantes do PCP eram oriundos das classes operárias. “O partido com paredes de vidro” sublinha igualmente a democracia como alavanca fundamental para o funcionamento do partido, onde impera o trabalho coletivo, e não a ação centrada num líder, pois como diz Cunhal nestas páginas «o mestre é um verdadeiro mestre quando os seus discípulos não fazem dele um Deus». Em suma, e tal como Daniel Vieira frisou, esta foi das obras de cariz técnico mais profundas que alguma vez foi escrita sobre a essência do PCP, uma obra que retrata os comunistas, a forma como se organizam, e nesse sentido não se estranha ser vista tanto a nível nacional como internacional como uma obra de referência para todos aqueles que querem conhecer a fundo o partido.

    ÁLVARO CUNHAL – O ARTISTA

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    Álvaro Cunhal passou grande parte da sua vida nas prisões e no exílio, período este aproveitado para colocar em prática a sua veia artística e cultural. Leu, escreveu, e desenhou, trazendo ao mundo nestes últimos dois campos inúmeras obras que ficaram perpetuadas na história. E foi em volta desta temática que girou a intervenção do segundo orador da noite, José António Gomes, poeta, escritor, professor universitário, e também ele um afeto ao PCP. Lançaria para a atenta plateia uma profunda reflexão sobre a obra artística e literária do carismático secretário-geral do partido. Na literatura desfiou de fio a pavio algumas das obras que ficaram célebres, com destaque para “Até amanhã camaradas”, que Cunhal escreveu sob o pseudónimo de Manuel Tiago, e que para o orador é um livro com o condão de abalar consciências, pautado por uma narração empolgante, rotulando-o de “Os Lusíadas” do universo do Partido Comunista. «É um livro interessante para todos aqueles que se aproximam de nós (comunistas), para os jovens militantes que iniciam a sua vida em volta do partido, já que é uma obra que explica o que são os comunistas, e em sequência disso faz ruir ideias (negativas) sobre os afetos ao nosso partido. É uma obra simples, clara, direta, e viva, fácil de ser interpretada mesmo para aqueles que não têm hábitos de leitura», explicou.

    Traçaria Cunhal não apenas como um notável escritor de ficção – destacando ainda, entre outros livros, a “Casa de Eulália”, outro popular, por assim dizer, livro de Manuel Tiago, este a retratar as incidências da Guerra Civil Espanhola – mas igualmente como um talentoso ensaísta e tradutor! É verdade, neste último aspeto recordou que foi na prisão que Cunhal traduziu – para português – uma das obras mais emblemáticas de William Shakespeare, o “Rei Lear”.

    O terror da tortura, da opressão, causados pelo regime fascista estão bem implícitos na maioria dos desenhos – sombrios – concebidos pelo líder comunista durante a sua “estadia” nas prisões. Desenhos e livros que mostravam um ser inquieto e multifacetado, que ao ler, escrever e desenhar colocava em liberdade o espírito de um corpo prisioneiro, conforme sublinharia no término da sua intervenção José António Gomes.

    Posteriormente seguiu-se um pequeno debate entre os oradores e a plateia, ou melhor, um conjunto de troca de opiniões, ou visões, sobre a obra de Álvaro Cunhal.

    A noite terminou com a leitura de um poema – distribuído a todos os presentes – da autoria de João Pedro Mésseder, o pseudónimo do orador José António Gomes, poema esse que passamos a transcrever nas próximas linhas.

    ÁLVARO – TRÊS MOMENTOS

    1

    Uma fronte e as sobrancelhas,

    depois brancas (o excesso).

    Olhar que interroga a vida

    sempre

    - sorrindo nos momentos de sorrir –

    e decompõe e recompõe

    Analisa avanços (por pequenos que sejam)

    e recuos (por pequenos que sejam)

    com a mesma voz e nervo

    com que antes enfrentara

    a desdita,

    a dura dita, o fáscio, a ditadura

    e aos sicários do poder acusara em tribunal

    de em servidão manterem

    um povo na penúria,

    um povo ao rés da morte.

    E por isso suportou o cárcere (o excesso),

    o isolamento.

    Combatido, em solidão, com outro excesso:

    escrita desenhos tradução

    (na cela, construir a liberdade).

    E repensou o mundo

    sonhou a pátria livre

    até lograr a fuga com os outros,

    nunca só –

    que o excesso, o bom excesso é também o coletivo.

    (E sorria nos momentos de sorrir. Camaradas lhes chamava)

    Clandestino ou no exílio

    de novo

    em excesso os envolveu:

    de coragem, de alento, de luz (a luz se faça)

    rumo à vitória.

    Esta em abril,

    o mês

    do grande salto em frente.

    2

    Eis aqui o homem que na máquina dos dias se desgastava, revivendo porém na febre de outros homens. E por isso não conhece o medo, o arremedo, a triste consonância das vozes sem rumo.

    Eis aqui o homem. Sozinho não desenha ainda o amanhecer. E por isso segura a mão de um outro homem que é já um prenúncio dos dias por chegar.

    Eis aqui o homem com o seu sol de estimação, seu modo obstinado de procurar o eixo das horas, por entre flores pisadas, declives, cilícios e manhãs de claridade.

    Eis aqui o trabalho do homem que lhe outorga o nome de homem. E por isso alguém o chama das colinas de alegria, diz-lhe «vem» e ele caminha pelo seu pé para abraçar o tempo que há-de vir.

    3

    A cabeça agora branca,

    pela argúcia esculpida e pela História,

    ao lado dos servos da gleba

    contra os vermes e os donos deste mundo.

    Por: Miguel Barros

     

     

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