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    Arquivo: Edição de 30-04-2013

    SECÇÃO: Literatura


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    A VOZ DAS PALAVRAS

    Eugénio: alguns traços

    A herança que Eugénio de Andrade nos deixa é incalculável, poucas haverá tão fecundas para a cultura portuguesa: mais de duas dúzias de livros de poemas, três ou quatro livros de prosas mais ou menos poéticas, dois livros para crianças, várias antologias, com destaque para a Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, várias traduções, sobretudo de poetas – desde a grega Safo a contemporâneos seletos. Por algum motivo Eugénio era, depois de Pessoa, o poeta português mais estudado e traduzido, pois já foi traduzido, e com sucesso, em mais de duas dezenas de línguas, incluindo o letão, o servo-croata, o russo, chinês, japonês. E não admira que a sua produção tenha merecido medalhas, condecorações e prémios nacionais e internacionais, com destaque para o Prémio Camões, que ele recebia com agrado mas que rapidamente esquecia, logo se entregando com humildade ao seu minucioso trabalho com as palavras.

    Eugénio não nos deixou só um legado literário, de uma poesia que soube conciliar o antigo e o moderno, o oral e o escrito, o popular e o culto, a cultura ocidental e a oriental; deixou-nos também o exemplo de um homem íntegro, rigoroso, devotado à causa da Justiça, da Verdade ou do Amor, implacável inimigo da frivolidade, da mentira e da hipocrisia e firme no cumprimento do dever.

    Nunca lhe faltou o gosto em viver nem desdenhou o prazer do corpo que tanto celebrou, e pôde até fazer, como nunca em português alguém fizera, o elogio do sorriso:

    «Apetecia / entrar nele, tirar a roupa, ficar / nu dentro daquele sorriso. / Correr, navegar, morrer naquele sorriso.»

    Para o Poeta “a morte é tão pouco”. Aliás, como ele também disse, o que mais nos deve doer não é a morte, «é o que nos divide e mata / antes de morrer”.

    Há no poeta uma interessante dicotomia entre palavra e silêncio, sendo que aquela se apresenta, face ao todo do corpo poético, como uma característica forma de silêncio. No poema "Sobre a palavra" isso é bem visível quando se lê:

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    «Entre a folha branca e o gume do olhar/ a boca envelhece / Sobre a palavra /a noite aproxima-se da chama / Assim se morre dizias tu/ Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura / Na porosa fronteira do silêncio / a mão ilumina a terra inacabada / Interminavelmente».

    Neste poema, como em muitos outros, a palavra é como que um recorte do silêncio eterno.

    É uma poesia cristalina, que valoriza a palavra, quer no seu valor imagético-simbólico, quer rítmico, sendo a musicalidade um dos aspetos mais marcantes, aproximando-a, assim, do lirismo primitivo da poesia galaico--portuguesa ou, mais recentemente, do simbolismo de Camilo Pessanha. Marcada por um lirismo puro, carregado de metáforas luminosas que harmonizam o amor e os quatro elementos primordiais: água, terra, ar, fogo. Exemplo:

    Fogo: verão.

    Água: fonte, rio, mar.

    Ar: vento, música, poesia.

    Terra: ruralidade, casa, mãe, corpo, criança, pastor; reino vegetal (frutos, rosa...); reino animal.

    Há a perspetivação da música entendida como metáfora da poesia. A essência de uma poesia/música provém de um obsessivo labor em relação ao qual o poeta, implícita ou explicitamente, convoca o modelo analógico de ordem musical. «Reescrevo os textos obsessivamente. Em mim o ataque do poema é da ordem musical. Uma palavra é como a nota que procura outras para o acorde perfeito». A metáfora da música revela a dimensão ontológica e a idealidade de um mundo ordenado por uma harmonia e equilíbrio essenciais, de profundas ressonâncias maternas. O poema, que congrega todos os elementos, aspira ao ideal de perfeição; como música verdadeiramente elementar.

    O acto de criação é de natureza obscura, nele é impossível destrinçar o que é de razão e o que é do instinto, o que é do mundo e o que é da terra; o acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação; o poema é conquistado sílaba a sílaba. Particularmente expressivo é o poema “A Sílaba”:

    «Toda a manhã procurei uma sílaba. / É pouca coisa, é certo: uma vogal, / uma consoante, quase nada. / Mas faz-me falta. Só eu sei / a falta que me faz.»

    Esforço, equilíbrio, capacidade de haurir as lições dos grandes mestres do passado (desde Homero), renovando-as e afeiçoando-as ao tempo presente, numa escrita despojada, mas também musical e fluida.

    A Casa, muitas vezes descrita na poesia de Eugénio, assume lugar da mãe e do corpo. A habitabilidade augura o preenchimento, a totalidade. A casa desabitada (porta fechada, casa na chuva...), sinal da ausência da mãe, é lugar de desproteção e abandono, e, portanto, metáfora do vazio.

    O Tempo assume uma importância constante em toda a sua obra. Essencialmente há três linhas segundo a metáfora vitalista: a infância, a idade madura (onde se instaura a coincidência estrutural que faz representar a idade como verão) e por fim o declínio.

    Outra característica sonante é o fluir da água, que simboliza o fluir do tempo e supõe uma ideia de percurso. Um procurado universo de água equivalente de um universo do desejo, do materno e da poética. O chamamento do mar (o ir e vir das marés) é materno.

    «O mar. O mar novamente à minha porta. / Vi-o pela primeira vez nos olhos / de minha mãe, onda após onda, / perfeito e calmo, depois, / contra falésias, já sem bridas…»

    A poesia fez o prodígio de Eugénio de Andrade, Eugénio de Andrade fez o prodígio da sua poesia: deixou-nos poemas e versos que não ressuscitam os mortos mas são ardor, fulgor, vigor e amor; amor que envolve pessoas, coisas, palavras; palavras que nos ajudarão a viver melhor e contribuirão para que a terra seja cada vez mais habitável.

    (*) [email protected]

    Por: Ricardo Soares

     

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