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Edição de 29-02-2024
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    Arquivo: Edição de 15-02-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    Cultura/Culturas

    No decurso dos séculos, abrigadas nas faldas das serras ou estendidas pelas quebradas, as aldeias transmontanas viveram praticamente isoladas, com a vila ou a cidade ali bem perto. Os ecos dos acontecimentos nacionais e internacionais tardavam a chegar e, com frequência, vinham alterados por defeito no esquema de comunicação. Ora o emissor ora o recetor, por vezes os dois distorciam o conteúdo da notícia, acrescentando o tal ponto de quem conta um conto. Como não acreditavam que fosse importante para as suas vidas, punham no relato, sem pejo ou má consciência, a respetiva chancela. Os aldeões só iam à vila ou à cidade quando tal era de todo imprescindível, de preferência nos dias de feira, mais propícios a adquirir o de que precisavam ou a vender o que produziam. Logicamente, também lá iam por disposições legais, por recurso à autoridade em matérias como a Justiça ou, em escassas ocasiões, para acederem a meios de transporte se pretendiam fazer viagem mais longa.

    Em cima, escrevi «com a vila ou a cidade ali bem perto», mas é preciso que se entenda a relatividade da expressão: umas aldeias situavam-se a poucos quilómetros, outras um pouco além e umas quantas a distâncias que inibiam os seus moradores, até ao limite possível, de se deslocarem. Alimonde ficava, numa imaginária linha reta, aproximadamente a dezassete quilómetros de Bragança, distância que, à primeira vista, poderia ser vencida em uma hora, no entanto, levando em conta que seria preciso alcançar o alto da serra, descer quase até ao mesmo nível do lado oposto, por terrenos tortuosos e acidentados, fazendo desvios para não ter que passar em propriedade particular, aceder à estrada e, por ela, chegar à entrada da urbe, seria tempo que nem um mensageiro espartano conseguiria cumprir. Gente nova, com energia e passada larga, fazia o trajeto em aproximadamente duas horas, os menos jovens mas suficientemente robustos para arrostarem com o esforço gastariam cerca de trinta minutos de acréscimo. Havia localidades bem mais distantes como Rio de Onor, famosa em Portugal e no estrangeiro pelo seu peculiar comunitarismo e por ser uma laranja metade portuguesa metade espanhola, cada uma dessas partes ciosa da sua identidade nacional. A aldeia ficava tão longe de Bragança que raramente alguém se ausentava da povoação, sobretudo em tempo invernoso, porque quase tudo era resolvido pelas autoridades locais eleitas pelos vizinhos. Na época de pagar a décima, alguém era incumbido de ir a Bragança satisfazer os pagamentos de todas as famílias portuguesas do lugar. A fim de evitar gastos próprios, o escolhido calçava umas botas – existia um par único, pertença da comunidade – por isso chamadas “as botas do povo” e, ainda que os seus pés recalcitrassem pelo aperto ou pela folga do calçado, outra coisa não restava ao caminhante que “fazer das tripas coração” e palmilhar fartos quilómetros sobre lodo, neve ou geada com muito mais dificuldade do que eu escrevo e o leitor, que me dá a sua preciosa atenção, se desfaz desta maçada. O percurso de ida e volta mais a degustação do farnel consumiam o dia de trabalho. Desta forma, cidade e aldeias distinguiam-se não só pelas atividades desenvolvidas (comércio e serviços no espaço urbano, agricultura e artesanato no espaço rural) mas pelas formas culturais próprias de cada uma: maneiras de falar, de vestir e de se comportar, hábitos familiares e sociais, mitologias e rituais específicos das respetivas ocupações.

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    A instrução não era assunto a ocupar a mente dos camponeses nos anos 20 do século passado. Portugal tinha, por essa altura, mais de 70% de analfabetos. Os 30% restantes residiam nos centros urbanos sobretudo nas maiores cidades do país; no interior, era ainda muito reduzido o número dos que frequentavam o ensino primário mesmo que, de forma intermitente, já houvesse professores nas aldeias. Em Alimonde, numa população pouco além de duas centenas de habitantes, a escolaridade era ainda bastante reduzida e só dois ou três rapazes tinham completado o nível primário, outros haviam frequentado a escola até aprenderem os rudimentos da língua materna e de matemática, o essencial para uma vida que continuava devotadamente ligada à lavoura e à pastorícia. A ligação entre a cidade e as aldeias dela, administrativamente, dependentes fazia-se quase em sentido único, das segundas para a primeira. Nos dias de feira, os homens traziam notícias obtidas nas tabernas onde reabasteciam o estômago com um molete de trigo, iscas de bacalhau ou de fígado de cebolada regadas com uma zaragatoa, por demais sacramentada, que lhes aguçava a língua e lhes acicatava a curiosidade. Além da ementa diferente do habitual e acima da política nacional e do que sucedia em países longínquos, estes interregnos interessavam-lhes pelos ditos e contos acerca das comunidades vizinhas. De jornais talvez tivessem ouvido falar mas, quanto a leituras, já sobravam as cartas que vinham das Finanças ou de qualquer repartição pública quase sempre para lhes lembrar relaxes da décima ou novas obrigações que uns liam esforçadamente e outros ficavam em favor a quem lhas soubesse descodificar.

    Pois foi neste ambiente que, nos anos 20, loucos em teatros diferentes, tranquilos na vida campesina, alguém teve a lembrança de realizar um estrelóquio, nome por que ficou conhecido o espetáculo teatral baseado em acontecimentos cómicos vividos na própria aldeia. O meu tio Manuel e o senhor Abílio, diplomados com a 4ª classe, escreveram o guião em versos hilariantes acerca do desaparecimento da cabra do Maçãera que levara à intervenção da Guarda Republicana após uma série de trapalhadas, as diabruras do Santarém (Santos), um cabeça de vento muito popular, e diversas situações caricatas do dia-a-dia aldeão. Viram-se em apuros quando precisaram de fardas para representarem os agentes que intervinham nas averiguações e dirigiram-se ao quartel da corporação em Bragança a fim de solicitar o empréstimo das ditas. O oficial de dia, não só lhas recusou perentoriamente, como os advertiu de que as fardas eram símbolos da lei e que podiam ser penalizados se ousassem levar por diante a intervenção da autoridade numa palhaçada de mau gosto como a que lhe haviam descrito. Não obstante a contrariedade, decidiram manter o guião, solicitaram os préstimos do tio Zé Larachas, alfaiate remendão duma aldeia vizinha, que lhas fez de boa mente ainda que as personagens mais parecessem bonecos de Entrudo do que elementos da guarda o que redundou em acréscimo de risota. O espetáculo fez um tal sucesso que, décadas volvidas, ainda era lembrado com saborosas gargalhadas. Quando me interessei por esse evento já tão distante, ninguém soube dizer-me o que acontecera ao dito guião. Presumo que nem os próprios autores os terão guardado.

    Ainda se viviam os anos difíceis do pós-guerra quando chegámos do Brasil. Trazíamos uma grafonola, objeto ainda desconhecido mas que, rapidamente, conquistou a população da terra. Aparecemos em junho, tempo de grandes canseiras no campo e escasso tempo para repousar. Mal terminaram as malhas, o cereal repousando nas tulhas, feno, palha e quanhos recolhidos nos palheiros, os serões eram, invariavelmente, preenchidos com canções saídas daquela caixa mágica. Os homens da aldeia apressavam-se a engolir o caldo e aí vinham eles em direção à nossa casa, de repente transformada em sala de música, e deliciavam-se com as canções ouvidas, discutindo preferências que o meu pai ia satisfazendo. De quando em quando, vinha ao Porto e levava discos novos que não deixavam esmorecer o entusiasmo. A certa altura, as mulheres começaram também a interessar-se, apareciam na companhia dos maridos e, às tantas, armava-se um bailarico a preceito. Chegada a primavera, os serões, de tão curtos, já não permitiam essas diversões e só na Senhora da Serra – oito de setembro – voltavam as noites mais longas e o consumo da música e da dança.

    Anos mais tarde, o Ernesto, filho da tia Cecília, chegou do Brasil com outra novidade: um rádio alimentado por bateria, porque a mãe o informara de que ainda não havia luz elétrica na aldeia. Desta vez, o interesse não foi tão notório uma vez que o Ernesto não nascera ali e partira ainda criança para o Brasil o que fazia dele um quase desconhecido. Constou-se e algumas pessoas mais próximas chegavam porque ali funcionava o posto de correio mas não eram convidadas a entrar para escutar vozes de longe.

    Não era, pois, a inaptidão nem a teimosia que distanciavam as pessoas da aldeia do acesso a formas mais constantes de cultura. Logo que as circunstâncias permitiram, registaram-se mudanças significativas que ainda perduram.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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