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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 10-01-2013

    SECÇÃO: Crónicas


    Costumes do passado fazem compreender melhor o presente e subsidiam o futuro

    Na minha criação, as ligações viárias de Bragança a outros grandes centros populacionais podiam contar-se pelos dedos das mãos e ainda sobravam dedos. Eram as portas de entrada/saída de e para outras terras: Vila Real e Porto alcançavam-se quer por Mirandela quer por Vinhais e à fronteira espanhola conduziam três estradas nacionais respetivamente a Chaves, ao Portelo, e a Quintanilha. Qualquer das vias existentes ignorava olimpicamente muitas centenas de pequenos aglomerados que ficavam à sua ilharga ou a vários quilómetros de distância. No entanto, eram utilizadas, por definição, para uso de todos e as pessoas que viviam nesses lugarejos buscavam-nas em qualquer ponto da sua trajetória, para seguirem a pé ou de camioneta rumo à cidade e vice-versa. Era lá que estavam os comércios, a Câmara Municipal, as Finanças, a estação central dos Correios, o hospital, os registos civil e criminal, a Casa da Justiça (Domus Justitiae) vulgarmente conheça por tribunal, e se realizavam três feiras mensais a 3, a 12 e a 21. A deslocação implicava, geralmente, longa e fatigante caminhada a pé, mais comodamente em lombo de burro ou de equino, mormente em se tratando de mulheres ou crianças, por carreiros, muitas vezes difíceis e perigosos, transpondo serranias, atravessando terrenos bravios, alagadiços, ou pequenas ribeiras, fossem quais fossem as condições meteorológicas, numa época em que o único indicativo era a tradicional sabedoria popular e as nem sempre muito exatas previsões do “Seringador” (1). Cavalos ou éguas eram ainda o meio de locomoção mais distinto para lavradores abonados.

    Havia ainda o transporte ferroviário que não servia diretamente todos os povoados da região nordestina mas que foi de inestimável utilidade para todos os habitantes dos concelhos que atravessava e cujo encerramento trouxe grandes prejuízos a toda a região e apressou o abandono das terras para a emigração e para as cidades. O prolongamento da linha, que já existia a partir de finais do século XIX desde a Foz do Tua até Mirandela, fora alongado até Bragança em 1906, graças ao empenhamento, entre outros, do Conselheiro Abílio Beça, mais tarde Governador Civil do distrito de Bragança, e extinto em 1992 no consulado de Cavaco Silva, atual presidente da República. Para evitar a revolta da população, algum tempo depois do encerramento da linha, o transporte do material circulante – por rodovia – foi efetuado de noite, sob a proteção da Guarda Nacional Republicana, para evitar provável levantamento popular, e ficou registado na memória coletiva como “a Noite do Roubo” (2). Qualquer que fosse o ponto do país a demandar, o meio de transporte mais requerido, se possível, era o comboio frequentemente alcançado por outros meios até à estação mais próxima.

    A maioria das aldeias não possuía sequer uma estrada municipal, quando muito um caminho mais transitável à custa dos próprios moradores que o amanhavam em dias de concelho (3), ainda assim esconjurado por taxistas mormente no outono e no inverno. E não havia lugar a censura porque o risco de partirem a suspensão ou de rebentarem os pneus dos veículos era muito elevado, tantas eram as poças que se iam formando com as chuvadas frequentes e quase inultrapassáveis as irregularidades dos caminhos. No início dos anos 60, ainda eram raros os moradores das aldeias que possuíam transporte motorizado, numa ou noutra alguém tinha camioneta para transporte de carga necessária ao próprio negócio e nem esses se atreviam a deslocar-se a localidades de mais complicado acesso. No verão, a conversa era outra: à passagem de qualquer veículo, erguiam-se nuvens de poeira que não impediam os garotos de correrem atrás dele e de alguns mais ousados se agarrarem aos taipais e subirem para a carroçaria das camionetas numa algazarra indescritível.

    Até à década acima referida, ir à cidade rimava com necessidade até na semântica: aquisição de artigos de mercearia para ocasiões festivas, venda de produtos da terra ou de criação na praça do mercado, de ferramentas ou alfaias agrícolas nos estabelecimentos da especialidade, compra ou venda de animais em dias de feira, pagamento da décima (4) na repartição de Finanças, envio ou levantamento de correspondência na estação dos Correios, algo que não pudessem fazer no posto da aldeia onde, diariamente, o carteiro entregava a mala e a recebia depois de selada, aquisição de bilhete para viajar de comboio enquanto foi possível ou nas camionetas da carreira para certas localidades.

    O bairro do Loreto marcava o limite da cidade para quem vinha das aldeias voltadas a norte, ultrapassados, do lado esquerdo, o lameiro do Calaia e o posto de cobrição dos Pinheiros e, um pouco adiante à direita, a quinta da Coxa onde deviam cultivar batatas todos os anos, porque a cultura popular as referia na expressão: «Tão certinho como as batatas na Coxa». Volvidos algumas dezenas de metros, a estrada era atravessada pela linha dos Caminhos de Ferro (ramal do Tua) e, a seguir, de um lado encontrava-se a capela de Nª Sª do Loreto, que dava nome ao bairro, e do outro um correr de casinhas antigas onde viviam famílias humildes, semi-urbanizadas. Mas, a entrada no espaço citadino só acontecia verdadeiramente junto aos negrilhos, acima da capela do Senhor dos Aflitos, para que as mulheres trocassem as meias de lã e o calçado rústico que usavam no caminho por meias finas e sapatos “de ver a Deus” (5). Funcionava assim a modos que um vestíbulo feminino ao ar livre porque os homens, esses já traziam de casa a melhor roupa e o melhor calçado que tinham e encaminhavam-se de imediato para o centro da urbe. O ato seguinte consistia em recolher as burras na parte baixa de casas construídas a pensar nessa utilização e cujas donas ou locatárias, amigavelmente, as cediam. Um braçado de palha ou de feno, que transportavam em alforges (6), enganava a fome dos animais enquanto as donas não viessem buscá-los para o regresso a casa. Só então as mulheres seguiam, livres e desembaraçadas a tratar dos respetivos afazeres. Os lavradores mais abastados vinham montados nos seus cavalos ou éguas que trotavam, garbosos, fazendo saltar faíscas no empedrado das ruas. Eram os Teixeira Lopes de Conlelas e de Grandais, o Amadeu de Oleiros, em certa época também o Chico Nunes de Alimonde entre outros.

    Quem vinha de outros lados procedia de igual modo. Os mais antigos referiam hábitos que eu já não pude testemunhar, por exemplo o abastecimento de leite, porventura de outros produtos lácteos, e de lenha em feixes que vinham vender para alimentar as lareiras e os fornos de lenha a que a gente da cidade se aquecia e cozinhava os seus alimentos à semelhança das suas fornecedoras. Esse abastecimento era feito por mulheres de povoações mais próximas, principalmente dos lados da Lombada, (Gimonde, Baçal, Vale de Lamas, Deilão…) montadas em burras ou mulas, alvos de brincadeira para a garotada citadina que usava a sua criatividade para provocar as aldeãs, espantando-lhes os animais e, algumas vezes, provocando o derrube das cargas e o revide num chorrilho de impropérios do seu vasto repertório enquanto eles desapareciam como por encanto. Lembro-me ainda de ver, num terreno junto à Praça da Sé, bem no centro da cidade, onde veio a ser construído o prédio em que passou a funcionar o então mais moderno café de Bragança, vários jumentos presos a duas árvores ali existentes. Estas vendedeiras não precisavam de trocar de roupa para “parecer bem” aos clientes.

    Para as antigas gerações, estes animais foram de enormíssima utilidade sobretudo nas terras do interior. Vejo com simpatia o empenho de pessoas e entidades de Miranda do Douro na preservação e promoção dos burros, embora em diferentes funções. São parte da memória de um povo que, até meio do último século, deles fez os seus mais fiéis servidores.

    Parte significativa dos moradores das nossas urbes procede do meio rural, tem ligação física e, sobretudo, afetiva ao seu torrão natal. Conheço muitas pessoas naturais do interior onde a realidade que transparece das minhas crónicas é muito semelhante à da aldeia onde nasceram e se reveem nelas. Também os naturais de Ermesinde ainda guardam lembranças dum passado rural que não anda muito longe do que venho evocando. Quem se encontra nestas condições não estranhará que, nesta e noutras crónicas, me detenha com especial carinho sobre uma realidade que bem conhecemos.

    (1) “Seringador” – jornalzinho anual voltado para o meio rural versando temas agrícolas, datas propícias às várias plantações, conselhos úteis, provérbios relacionados com o ciclo anual das culturas e outras indicações.

    (2) “A Noite do Roubo” – a Wikipédia donde extraí a expressão não precisa a data. Diz que o troço Macedo de Cavaleiros – Bragança foi encerrado em dezembro de 1991.

    (3) Dias de concelho – dias em que o povo era convocado para trabalho comunitário. Devia comparecer uma pessoa por cada família.

    (4) Pagar a décima – efetuar o pagamento do imposto predial das terras de que cada um era possuidor.

    (5) “De ver a Deus” – significa roupa e calçado que é usado para ir à Igreja assistir a qualquer ato religioso. De apresentar-se diante de Deus.

    (6) Alforge – espécie de saco comprido fechado nas extremidades e aberto no meio por onde se dobra formando duas bolsas que se usa ao ombro ou sobre o dorso das montadas (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea – Verbo Editora).

    Por: Nuno Afonso

     

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