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    Arquivo: Edição de 16-11-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    Ciclos da vida

    Na primeira vez que pisei a terra dos meus ancestrais não imaginava que dela iria fazer igualmente a minha pátria. Quando os meus olhos comunicaram ao cérebro as primeiras impressões, a mensagem por ele ditada foi negativa, em nada condizente com a imagem que, em palavras, me fora transmitida vezes sem conta e em nada correspondia ao ambiente urbano donde provinha. Uma criança de quatro anos ainda não consegue ajuizar das intenções não ditas entre a realidade e o discurso reportado, neste caso, do meu pai.

    Eu possuía já uma certa noção de beleza que não obtivera resposta favorável naquelas construções rústicas, muitas de pedra vã quase desfeita a argamassa de barro que outrora fora o seu elemento de união, algumas caiadas de branco, o que lhes conferia um certo encanto, cobertas por um material que a passagem do tempo escurecera e cujo nome aprendi depois (1) nos caminhos escalavrados (2) e poeirentos pelos quais transitavam homens mal vestidos (3) equilibrados num calçado estranho, (4) empunhando varas compridas (5) e guiando animais corpulentos de longos chifres que puxavam carros de rodas altas (6) – estávamos em junho, época de recolher o feno (7) que haveria de garantir o sustento dos animais no rigor do inverno ou quando escasseavam outras forragens – que chiavam sob o peso de grandes e pesadas cargas (8) acompanhados de mulheres e homens que traziam aos ombros uma espécie de garfos de cabo de madeira e dentes de ferro (9); na escuridão das ruas, mal fechava a noite, e no interior das casas iluminadas somente pelos lampejos do fogo das lareiras e por uns objetos de que saía uma chamazinha tremeluzente (10) que, pouco a pouco e à medida que os olhos se iam habituando, permitiam distinguir tudo quanto se passava à nossa volta: os familiares, o banco grande de madeira, de assento largo e espaldar bem alto (11) onde as mulheres podiam sentar-se dobrando as pernas e cobrindo-as com os vestidos para não fazerem cabras (12) e os mais pequenos com elas a bambolear, as banquinhas individuais também do mesmo material, as panelas de ferro de três pés, enegrecidas, (13) postas em torno da lareira sobre as brasas resultantes da combustão da lenha e onde eram cozinhadas batatas com o respetivo conduto (14) e também o indispensável caldo temperado com unto (15), ali mesmo servidos, ao jantar, sobre uma mesa acoplada ao banco, a mesa grande de castanho em torno da qual tomavam lugar, ao almoço, os membros da família, convidados e trabalhadores, a cantareira onde se alinhavam o cântaro, a cântara e o jarro (16) para transportarem a água da fonte para a confeção das refeições e toda a limpeza da casa e dos seus moradores; nos vários toques dos sinos reguladores da vida aldeã: as Ave-Marias, manhãzinha cedo já os homens andavam por lá, e as Trindades – onde quer que as pessoas estivessem, os homens descobriam-se (17) e em conjunto rezavam o Ângelus – quando se anunciava o fim do dia, sinal de recolher para toda a família salvo para os homens cujo trabalho ainda não terminara e se prolongaria com o desapor dos carros (18) e o desjungir (19) dos animais de tiro, depois da ceia familiar viriam ainda acomodá-los (20), algumas vezes iriam ao moinho para verificarem o andamento da função, reabastecer de cereal a tremoia (21) examinarem o estado da farinha, detetarem alguma anomalia no sistema ou em qualquer das suas peças e procederem em conformidade, regularem o caudal de água, – em hora mais tardia, havia o toque das Almas, claro, em nome das Almas do Purgatório, a Missa dominical era anunciada em três momentos, concedendo algum tempo aos fiéis para retornarem a casa se fora estivessem ou prepararem-se para não faltar ao início da liturgia se permaneciam em casa, cada um distinguindo-se dos outros pelo esquema rítmico a que obedecia o jogo do sinos, o da sineta mais agudo e o do sino (22) mais grave, e também pela cadência mais lenta ou mais rápida entre o primeiro, o segundo e o terceiro toques, o anúncio de batizados quando mais um nome era acrescentado à comunidade cristã e o toque a finados quando alguém deixava a vida terrena, além de outros em ocasiões mais raras de convocação urgente (23).

    Encosto-me ao umbral imaginário da porta da nossa antiga casa e a sombra projetada para o interior simboliza todo o processo de perdas e ganhos nesse longo período de ressocialização: perda de recordações dos primeiros anos, de hábitos adquiridos, dos recursos linguísticos expressos no sotaque dalém Atlântico, e ganho de uma nova identidade social e comportamental. Esse foi um dos tempos mais importantes da minha vida e se, nesta e noutras crónicas, impera a primeira pessoa, tal não acontece por egocentrismo mas no intuito de representar um legado de muitas gerações que viveram naquele espaço em que fui criado, com os seus usos e costumes, a sua mundivivência e mundividência,(24) os seus valores morais e cívicos que tornavam a comunidade única e múltipla, simultaneamente criativa e recetiva, materialmente pobre mas em extremo rica no humanismo das inter-relações com outras dos meios rural e, sobretudo, urbano. Até meados do século anterior, esse património imaterial assemelhava-se a um mecanismo repetitivo quer nos procedimentos quer na manifestação de ideias para o futuro: a aldeia voltada para ela mesma de certo modo oposta à cidade onde os seus moradores iam apenas em dias de feira (25), para adquirirem bens que não produziam e socorrer-se de serviços oficiais – Registo Civil e Tribunal, Câmara Municipal e Finanças, farmácias e pouco mais. Em larga medida, esse distanciamento deveu-se à falta de ligações escorreitas entre a aldeia e a cidade que amplificava não só a dificuldade de comunicação como também a carência de meios financeiros inibidora de voos mais altos na educação dos filhos. A pouco mais de uma dúzia de quilómetros de Bragança, não existia uma estrada que as ligasse, tão só um caminho que o povo ia reparando com os próprios meios o que tornava a sede do concelho um lugar distante física e humanamente falando. A emigração, primeiro para o Brasil depois para os países europeus, ajudou a alterar mentalidades e a criar condições para que as crianças pudessem prosseguir estudos, uma vez concluída a instrução primária. Veio a instalação do serviço público de telefone, um pouco mais adiante a eletrificação das casas, a ligação por estrada com a sede do concelho e o benefício do transporte urbano que tornou muito mais rápida e fácil a ida à cidade que pouco antes se fazia a pé e consumia horas de viagem. Finalmente, a aldeia foi alvo de um processo de requalificação dos arruamentos, um sonho que nascera ainda nos anos 40 e ficara suspenso, infelizmente sem o devido respeito pela cultura local: lugares emblemáticos, jogos tradicionais, ordenamento habitacional e outros.

    Paradoxalmente, à melhoria nas condições de vida correspondeu o progressivo esvaziamento da comunidade. Uns deram seguimento ao processo emigratório e fixaram-se na França, na Alemanha, na Suíça; outros partiram para os grandes centros e, em grande número, adquiriram formação média e superior, aos professores juntam-se hoje médicos, farmacêuticos, enfermeiros, e diplomados noutras áreas do conhecimento. A população atual é ainda numerosa, se a compararmos com a de aldeias similares, mas constituída por gente idosa. A última criança ali nascida tem, atualmente, doze ou treze anos, seguindo a tendência de envelhecimento do país. Esses e outros fatores adversos não obstam ao meu amor por esse rincão onde fui criado e onde repousa grande parte do meu passado.

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    1. Telha artesanal, moldada em barro e cozida em fornos abertos no solo em certos locais.

    2. Escalavrados - danificados pelo uso contínuo, de piso irregular e difícil.

    3. Roupas em tecido rústico, em certos casos ainda de pardo (espécie de burel).

    4. Calçado estranho – socos ou tamancos de confeção típica.

    5. Varas compridas – aguilhadas, normalmente chamadas varas com ponta de metal afiado para picar os animais.

    6. Carros de rodas altas – típicos carros de bois.

    7. Feno – erva que, adrede, se deixou crescer nos lameiros e era ceifada no início do verão e guardada em palheiros para alimentar gado bovino, asinino, equino…

    8. Grandes e pesadas cargas - o carregamento e arranjo do feno nos carros exigia alguma especialização para não se ir desmanchando pelo caminho.

    9. Espécie de garfo – forquilha, espalhadoura (termo regional).

    10. Objeto de que… – candeia alimentada a petróleo.

    11. Bancos – eram chamados escanos.

    12. Cabras – manchas provocadas pelo afluxo do sangue às pernas muito expostas ao calor.

    13. Panelas de ferro… – potes.

    14. Conduto – em geral, carne de porco ou enchidos.

    15. Unto – gordura retirada da carcaça que, depois de pisada e com sal, era conservada ao fumo.

    16. Cântaro – recipiente com capacidade de 12,5 l ; Cântara – com o mesmo formato, de menores dimensões, Jarro – recipiente mais estreito e alto geralmente fazendo parte do conjunto do lavatório.

    17. Descobriam-se – tiravam chapéu, boné, boina, etc..

    18. Desapor – desprender o carro do jugo a que vinha preso.

    19. Desjungir – desprender os animais do jugo.

    20. Acomodá-los – pôr comida na manjedoura, em geram feno ou palha para comerem durante a noite. 21. Tremoia – termo local ou regional de tremonha, a peça do moinho donde caía o grão sobre a mó.

    22. Sinos – há um sino maior e outro menor, este conhecido por sineta.

    23. Chamamento da população para fins diversos. Tocar a rebate acontecia em casos graves como incêndio ou outro.

    24. Mundivivência e mundividência – maneira de viver e de entender o mundo.

    25. Dias de feira – em cidades, vilas e algumas aldeias havia dias marcados e todos os meses ali se realizavam feiras para compra e venda de animais e produtos diversos.

    Por: Nuno Afonso

     

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