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    Arquivo: Edição de 31-10-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    Profissões desaparecidas

    Ao evocar profissões que conhecemos e que, há muito, desapareceram sei que alguém vai ser acometido por um sentimento aparentado à saudade. Na verdade, talvez não seja esse o termo adequado, talvez nostalgia corresponda melhor ao sobressalto do nosso coração porque o mundo em que vivemos é bem diferente daquele em que tais figuras existiram e o seu crepúsculo parece justificar-se sob a capa do progresso. Saudade, temo-la de nós próprios quando esses homens e essas mulheres faziam parte do nosso mundo em períodos de linhas imprecisas a que chamamos infância, juventude, mocidade. Fomos morrendo nós enquanto crianças, jovens, aspirantes a adultos. As pessoas que exerciam esses mesteres talvez tivessem mudado de rota quando os aldeões já não podiam garantir-lhes a subsistência e tenham procurado outros espaços ou diferentes ocupações para se manterem. Eram “de longes terras”, espécie de nómadas tais que mendigos ou ciganos, e acomodavam-se em palheiros ou cabanais (1) cedidos pelos moradores dos lugares por que passavam.

    Cada um de nós não deixou de ser criança de um momento para o outro, nem a juventude passou num ápice, os dias foram-se escoando, a bom rigor sem darmos conta, somaram anos, crescemos e, à medida que crescíamos, ocorreram inúmeras mudanças que determinaram alterações em nós próprios, nas pessoas que nos rodeavam, nos hábitos, nas condições de vida, nos relacionamentos interpessoais. Talvez não nos tenhamos apercebido logo de muitas dessas mudanças, foram acontecendo aos poucos, em certas ocasiões detetávamos algumas diferenças mormente quando aparecia alguém que não víamos durante algum tempo: “como cresceu o Carlos da tia Balbina!” comentávamos, esquecendo-nos de como nós próprios tínhamos mudado em idêntico período. Morria uma ou outra pessoa da nossa comunidade, partiam algumas para os grandes centros ou para terras distantes, trocavam-se cartas, «que terá acontecido ao Zé do tio Canalha que não tem escrevido (2)?», alguém perguntava em ajuntamentos sabendo, de antemão, que não obteria esclarecimento, praticavam-se e multiplicavam-se atos diversos, melhoravam-se os caminhos, fazia-se a captação de águas para construir fontanários e tornar mais fácil e mais saudável a vida de todos, terras onde não ia um automóvel passaram a dispor de estrada e de comunicação mais fácil com a cidade, abriam-se novas perspetivas de emigração e dezenas de pessoas foram viver para a estranja. Em contrapartida, alguns serviços prestados por homens e mulheres que percorriam as aldeias vendendo, comprando, consertando produtos ou utensílios domésticos deixaram de ser necessários e, apercebendo-se de que escasseavam as oportunidades de negócio, mudaram de rumo e, provavelmente, de ocupação. Os habitantes das aldeias reduziram-se drasticamente e os que teimavam em manter-se mudavam os seus hábitos de consumo.

    A dado passo, o transporte público alargou-se às populações da área envolvente das cidades. A vida dos moradores alterou-se para melhor, os homens válidos que restavam podiam ir trabalhar em serviços urbanos regressando ao fim da tarde, crianças e jovens passaram a ter mais facilidade para seguirem estudos preparatórios e secundários, os moinhos, até há pouco indispensáveis para transformarem o cereal em farinha para o pão-nosso de cada dia quase deixaram de laborar porque, agora, vinham “carrinhas” vender centeio e trigo prontos a consumir. Os que teimavam em manter-se já não fabricavam as leiras com o auxílio dos animais. Tratores, debulhadoras e outras maquinarias tornaram muito mais fácil e rápido o trabalho nos campos. Bois, vacas, burros, machos e outros dóceis companheiros de muitas gerações de camponeses quase desapareceram da paisagem rural.

    O comércio ambulante que ao longo de séculos serviu as populações aldeãs já não era senão lembrança. As trocas diretas de produtos que, há longo tempo eram rotineiras, cessaram pouco a pouco. Deixaram de vir as figa(t)cheiras (3) guiando burras, com as suas canastras atestadas de figos que enchiam cestas e recebiam em troca a mesma medida de batatas; o sardinheiro, que transportava caixas de sardinha, chicharro, congro e capatão (4) conservados em espessas camadas de sal, aceitava também ser retribuído em quantidade pré-estabelecida do mesmo tubérculo, o produto mais abundante nas terras frias transmontanas; a louceira que trazia recipientes de barro simples ou vidrado e que partia com os alforges da burra bem preenchidos de batatas ou centeio medido em quartas (5) ou pesado em balanças romanas (6) e a carteira com mais umas c’roas ; o latoeiro que vendia ou botava pingos em latos (7), cântaros ou cântaras, crivos e outros objetos metálicos de uso corrente; o sombreireiro que reparava aqueles rijos guarda-chuvas de antanho com panos ou varetas; o amolador que esmerilava tesouras, facas e canivetes nas suas maquinetas pouco mais que primitivas, recebendo em troca reduzidos tostões; o azeiteiro e o peliqueiro (8) que vinham de Carção e de Argoselo, terras de cristãos-novos vocacionados para os negócios, a vender azeite que ali não se produzia e a comprar péis (peles) de coelho, mais raramente de cabrito, e não reconheciam outra forma de pagamento senão moedas e notas; o capador que se anunciava tocando uma gaitinha e cujos serviços eram essenciais para evitar que as recas (9) emprenhassem porque era preciso cevá-las para poderem ser abatidas no inverno, tempo de mata-porca, data importante no calendário rural nordestino por dar início ao processo de conservação das carnes – presuntos mantidos no sal durante semanas e depois levados ao fumeiro juntamente com os enchidos para cura – que seriam consumidas ao longo do ano. Outros animais domésticos poderiam também ser castrados segundo conveniência de serviço ou como forma de evitar criações indesejadas. Havia ainda o ferrador que, além de pôr ferraduras aos animais de tiro e, à falta de veterinário, diagnosticava doenças desses animais, prescrevia medicamentos e formas de tratar as moléstias e o correio, homem ou mulher que transportava a correspondência, em malas apropriadas, a pé ou montado em jumento, a troco de mísera quantia disputada em leilão dos CTT. Em épocas mais recuadas, havia homens que, munidos de estojos onde guardavam ferramentas apropriadas, executavam trabalhos diversos como barbear, lancetar abcessos, aplicar pomadas e desinfetantes em ferimentos, recomendar formas de tratar moléstias humanas, substituindo médicos que não havia ou a que as pessoas não tinham acesso por falta de dinheiro ou por preconceito (10). Uns chamavam-lhes barbeiros, outros tratavam-nos pelo nome próprio sem alusão a qualquer dos ofícios por eles desempenhados.

    Pedaços de vida, mundos extintos, é indispensável que essa memória não seja apagada em nome de falsas noções de progresso ou ridículo amesquinhamento de outros modos de viver. Preservar costumes é contribuição inestimável para afirmação da personalidade de um povo.

    (1) Cabanais – alpendres cobertos para guardar lenha, alfaias agrícolas e outros fins.

    (2) Escrevido – particípio passado do verbo escrever, gramaticalmente incorreto mas de uso corrente, à semelhança dos verbos regulares da 2ª conjugação (infinitivo em –er)

    (3) Figa(t)cheiras – nome atribuído às mulheres que vendiam figos. O t colocado entre parênteses tem o objetivo de exemplificar a pronúncia do dígrafo ch em terras do interior transmontano.

    (4) Capatão – Peixe teleósteo da família dos esparídeos, comum nas costas portuguesas, caracterizado por ter uma protuberância na parte superior da cabeça e também chamado pargo-de-mitra (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea mais conhecido por Dicionário da Academia)

    (5) Quarta – ¼ de alqueire. Este tinha 15 litros para líquidos e 11 Kg para sólidos como o cereal.

    (6) Balança romana – instrumento que serve para pesar formado por uma alavanca de braços muito desiguais com o fiel sobre a ponta de apoio. O corpo que se vai pesar coloca-se na extremidade do braço menor, equilibrando-se com um peso constante que se faz deslizar sobre o braço maior, onde se encontra localizada a escala de pesos (Grande Dicionário Enciclopédico Ediclube).

    (7) Lato – recipiente em latão cuja principal utilidade era cozer a vianda para os suínos.

    (8) Peliqueiro – peleiro, homem que compra e vende peles de animais.

    (9) Recas – porcas, suínas.

    (10) Preconceito – o preconceito que existia tinha por génese o orgulho das pessoas em serem saudáveis sem precisarem de ir ao médico ou de utilizar fármacos.

    Por: Nuno Afonso

     

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