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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 17-10-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    Repassando páginas

    Prosseguia o mês de agosto a sua caminhada, já na fase derradeira do percurso, distribuindo uns pingos de chuva hoje, outros amanhã, mas sem a alegria calorosa que lhe é consignada e que a memória coletiva guardou séculos a fio e, eis senão quando, resolve, independente de qualquer aviso prévio, enviar-nos uma daquelas canículas à moda antiga, calor que julgaríamos capaz de reduzir a papa os mais sólidos monumentos que herdámos dos nossos maiores. «Calor de derreter catedrais», como dizia o escritor, dramaturgo, cronista e poeta do pontapé na bola Nelson Rodrigues, entre outras metáforas bem sugestivas, em saborosos escritos no “Jornal dos Esportes” ou nas tertúlias televisivas da Globo, comentando os incidentes de cada rodada (jornada) com João Saldanha, ex-preparador físico da Seleção brasileira, mais adiante treinador efémero, botafoguense apaixonado, e Jaime Luís, meu antigo colega nos escritórios da Mesbla, torcedor do Fluminense e correspondente do jornal desportivo “A Bola” no Rio de Janeiro, ele, Nelson, dava o sangue do braço pelo clube rubronegro (Flamengo). Nelson Rodrigues tinha a particularidade de não esconder muito os próprios sentimentos, detestava a hipocrisia, por isso detestava o Jaime, não por ser português mas porque era um gajo pouco fiável. Jaime vivia no bairro das Laranjeiras, paredes meias com o clube tricolor, tornou-se jornalista e fazia essa perninha de comentador desportivo na televisão dos irmãos Marinho. A metáfora e o sequente desenvolvimento ocorreram-me devido ao calor insólito desse dia estival. Se o leitor entender que são inoportunos leve em consideração que talvez a temperatura me tenha afetado o cérebro.

    Entre o almoço e o previsto regresso cerca das dezoito e trinta, havia tempo para um programa integral desde que preparado com antecedência. Ficava a meu critério preenchê-lo depois que deixasse a minha neta em casa de uma amiguinha no começo da Rua Júlio Dinis até que fosse buscá-la antes das seis e meia p.m.. Dispor de uma tarde inteira, sujeitar assim o tempo ao meu livre alvedrio era algo tão raro e inesperado quanto perturbador. O que fazer de tantos minutos que, em dias normais, são avaramente ocupados? É verdade que trazia comigo a revista da semana e o livro que, na ocasião, andava a ler, porém a tentação de um passeio por sítios que foram palco de uma época do meu peregrinar pelo Porto levou-me a fazer um rateio entre o passado e o presente, a evocação e a realidade, a repetição ou a procura de uma nova rubrica numa difícil escolha por qualquer deles, afinal tudo era passado e o futuro já estava em marcha.

    A primeira dificuldade consistia em encontrar vaga para estacionar o automóvel. As circunstâncias pareciam favorecer-me, agosto era o mês de férias por excelência, a maioria da população devia ter-se deslocado para a orla marítima ou gozaria o estatuto de turista aquém ou além fronteiras. A Rua do Vilar estava mesmo ali onde moravam algumas recordações dos meus tempos de faculdade. Um veículo acabava de sair em frente ao palacete dos Sá Coutinho e não me fiz rogado. Dali podia aperceber-me de entradas e saídas do antigo edifício. Talvez a minha colega Eugénia aparecesse naquele seu jeito descomplexado, inteligente e distinto que eu bem conheci nas calendas dos anos setenta quando, já acima dos quarenta anos e assistente literária da Emissora Nacional, entendeu que devia licenciar-se em Filologia Românica inscrevendo-se na nossa turma. Nunca poderia ter-me ocorrido perguntar-lhe a idade mas era, sem dúvida, cerca de uma dezena de anos mais velha do que eu e poderia ser mãe da maioria das minhas colegas recém-vindas do ensino secundário. Numa daquelas conversas ocasionais manifestei-lhe a minha dificuldade em acompanhar as aulas de Francês em que as trocas linguísticas eram realizadas exclusivamente na língua materna dos professores. Lembrei-lhe que a minha aprendizagem fora à base de gramática, vocabulário e domínio da escrita. Os meus professores exprimiam-se em Português no decurso das aulas. Estava a frequentar o Instituto Francês mas ainda não era o suficiente para manter um diálogo oral fluente.

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    – «Leia» – respondeu ela –, «leia tudo o que lhe vier às mãos: revistas, textos avulsos, o que encontrar. Eu talvez possa ajudá-lo: as editoras francesas enviam-me as suas novidades. Passe lá em casa que eu empresto-lhe os livros que desejar».

    Foi em resultado deste convite que, dias depois, me recebeu em sua casa, nesse mesmo palacete que, agora, tinha à minha esquerda. Apresentou-me às suas filhas e entregou-me uma obra que entendeu adequada para o meu caso. Voltei lá ainda uma ou duas vezes para entregar um livro e levar outro. Devo-lhe grande parte do progresso que, em pouco tempo, alcancei. Desde a nossa licenciatura só voltei a encontrá-la numa “festa do livro” realizada ali bem perto no Pavilhão Rosa Mota. Aquele imóvel apresentava o ar decrépito de muitos anos atrás, agora ainda mais acentuado: janelas fechadas, portão sem qualquer sinal de movimento. A minha colega teria morrido? E as filhas onde viveriam agora, porventura casadas, com filhos criados…

    Fiquei ali algum tempo mas acabei por me aborrecer e, mesmo sob a ameaça do intenso calor, tranquei o carro e dirigi-me para o centro da cidade. Tomei café no Piolho, local de encontro da malta no tempo em que o curso de Românicas estava instalado no edifício abaixo do quartel da GNR do Carmo e em frente do Hospital de S. António. Ali completei o quarto ano antes da mudança para o Campo Alegre ao lado do Jardim Botânico. Esse prédio serviu de instalação para o Instituto de Ciências Biomédicas Dr. Abel Salazar que, agora, também já funciona noutro lugar. Decidi subir o escadario que, quarenta anos antes, diariamente me conduzia às salas de aula. Tudo estava mudado. O grande átrio de antigamente fora dividido em duas partes: um pequeno hall de entrada fechado e uma portada que abria para um espaço mais amplo dominado pelos bustos do patrono e do Dr. Corino de Andrade, que ali ensinou e continuou as suas investigações sobre a amiloidose vulgarmente conhecida por “doença dos pezinhos”. Em frente tudo mudara também. Percorri aqueles espaços a reorganizá-los mentalmente: desaparecera a mesa de receção onde, em tempos, pontificava o sr. Madureira, homem simpático que a todos procurava ajudar e que um brutal acidente de viação roubou do nosso convívio quando, na companhia de primos emigrantes no Luxemburgo, era conduzido à sua aldeia transmontana para conviver com a família. Lembro-me das suas risadas e das escapadelas a uma tasca do outro lado da rua para beber o seu copito. Professores e alunos participaram numa Missa de sufrágio por sua intenção na Igreja dos Clérigos, celebrada pelo então professor de Filosofia Dr. Januário Torgal Ferreira, atual Bispo das Forças Armadas e porta-voz dos Bispos Portugueses. Quantas conversas se desenrolaram naquele átrio. Para além dele, do lado esquerdo, havia uma escada que levava ao Salão Nobre, onde se desenrolaram os célebres “julgamentos” dos professores coniventes com a repressão fascista e se realizaram RGAs sem conta nesses tempos conturbados do pós-25 de Abril de 1974. Estranhamente, no pequeno hall de entrada há várias placas comemorativas dos cursos que ali funcionaram mas nem sinal do Curso de Filologia Românica que lá ficou instalado de 1969 a 1976.

    No regresso percorri pela enésima vez o espaço denominado Palácio de Cristal com os seus jardins, as edificações, os vários planos do terreno, a vista sobre o Douro e para a ribeira de Vila Nova de Gaia e as suas famosas caves do vinho chamado “do Porto”. A frescura do lugar convidava à permanência, por contraste com as elevadas temperaturas do exterior. Sentei-me num muro a saborear a deslumbrante paisagem que me era oferecida. Ali ficaria mais tempo, mas as horas tinham passado e pouco faltava para o regresso pré-estabelecido. Cheguei ao carro mesmo a tempo de ver um táxi estacionar junto ao portão da família Sá Coutinho. Dele saiu uma mulher curvada, de chapéu que lhe ocultava o rosto, carregada com sacos de compras, sem que o motorista esboçasse um gesto para a auxiliar. O portão ficou aberto e o motorista sentou-se à sua espera. Foi bastante longa a espera mas, finalmente, apareceu a senhora idosa e curvada, em quem reconheci a minha antiga colega. Fechado o portão, reentrou no táxi e partiu. Durante esse tempo de espera ainda pensei em ir falar com ela mas desisti da ideia julgando que já não me reconheceria. O tempo oxida até as nossas mais gratas recordações.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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